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um amor atrevido

um amor atrevido

Junho 10, 2016

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Vieira do Mar

Olha, uma visita turística está bem, mas não te iludas: não quereria percorrer todas as tuas divisões, cerra as antecâmaras antes que veja demais. Nada sei do teu sorriso, mas sei de um segredo nos teus olhos, a única parte de ti que exibes à exaustão, como se ter pestanas longas atestasse qualquer coisa de bom em ti. Já eu, queimei as minhas a prescrutar os teus olhos, pelo que pelos meus, não vais lá. Depois, o meu marido chega, eu faço o jantar e finjo que tenho uma pestana tua na minha sopa, que afasto gentilmente para o canto do prato. Mentira: como-a, juntamente com as ervilhas. Sempre fugiste, pelo que é uma forma de te sentir o sabor. Porque não podes sair cedo do trabalho, porque a namorada tem ciúmes, porque não convém ultrapassar as inconveniências da proximidade. Mas não faz mal: imagino que o teu toque seja o contrário do de midas e não falo de moedas de ouro. Até agora, foste mero prenúncio de desastre natural, mas apenas uma daquelas trovoadas secas que antecedem as monções e que se limitam a criar altas espirais de fogo apontadas para o céu, poupando o verde que existe em volta. Não deves ser compatível nem com alguém do teu género, quanto mais com o teu oposto: consta que estes se atrem, mas só por breves momentos, como sabemos; depressa nos desinteressamos, porque olhar para o espelho cansa a não ser que sejas o oscar wilde. A tua escrita, às vezes inspirada, tem no entanto um quê de piroso, como uma loura bonita vestida de prada que deixa as raízes negras do cabelo à mostra. Queres classe com perversão, mas não existem ladies na mesa e putas na cama, isso é o tema de um livro mau, ou um ideal pimba, que confundes com algo transgressivo. Somos todas putas em todo o lado, até na mesa, mas fingimos bem, basta comer de boca fechada e não errarmos o talher. Mesmo assim, se gargalharmos como a julia roberts podemos errar no das caracoletas. Desconfio que tens alguma da aridez ingénua do homem comum de steinbeck, mas fazes por encarnar a ébria urbanidade de um bukowski estilizado. Embora se desprenda um pudor quase retrógado na tua escrita que te leva a conter o calão, talvez para não desagradar as massas, ou apenas porque não consegues, ficam-te presos os dedos. Achas-te atrevido na cama, mas aposto que qualquer coisa mais do que umas algemas fofinhas e a promoção do dia na sexshop mais fina da cidade, já te repugna. Não estamos destinados um ao outro porque estaríamos feitos um com o outro. Quando chegasse o momento de jogarmos ao rei manda, temo que, se te ordenasse três passos à caranguejo, assim cautelosos e de ladecos, investisses contra mim em rodopio, dez passos à bailarina, convencido de que me estavas a levar a abrir as pernas com o teu encanto natural, um passo à tesoura, menina, vá, que aqui mando eu. Olha, uma visita turística está bem, fiquemos assim: ouvirei atenta as palavras monocórdicas do guia e guardarei o folheto da entrada com o mapa confuso dos teus visitáveis recantos. Assim, cumprem-se ambos os nossos desejos: manténs a distância que sempre quiseste e eu fico a olhar a espiral de fogo até que se extinga no centro da relva verde que piso, a salvo nas orlas, assim não me queimo sem que valha mesmo, mesmo, a pena.

el secretodesusojos.jpg(el secreto de sus ojos)