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um amor atrevido

um amor atrevido

Abril 15, 2006

gone with the wind

Vieira do Mar

Divirto-me a trepar e a descer a hierarquia dos meus amores, como se me empoleirasse numa daquelas escadas de pintor com dois lados, no meio de uma sala atafulhada de bricabraques coloridos, a minha vida cheia. Apercebo-me de que todos sem excepção foram amores, sempre atrevidos, alguns desmesurados e excessivos, como os saltos das botas que gosto de usar ou as palavras com que gosto de me entreter. Noto, beliscando-me a pele da memória, que nenhum me foi especialmente doloroso, mas também nenhum me foi indiferente: ainda hoje, gosto de todos, amavelmente, só não gosto de ti. Reparo que não te enquadras na fotografia de grupo, não és uma daquelas caras sorridentes que me brindam de copo no ar e no entretanto balanço-me no escadote, escalando-os e deixando-os para trás, aos meus amores. Tu, vejo-o agora, estás num dos cantos da sala vazia, os jornais espalhados pelo soalho a protegerem-no dos pingos de tinta como nos protegemos das lágrimas. Olhas-me do vértice onde te páras e um raio oblíquo de sol parte-te ao meio o sorriso complacente, deixá-la medir-se os amores que foram os outros, é deixá-la... está entretida, isto passa-lhe. Às tantas levantas-te, aproximas-te de mim de trincha em riste e, com um encolher de ombros, desatas a pintar-nos em todos os sentidos e a várias demãos: os outros, os degraus, a estrutura de alumínio, os outros (salpicas-me o pé esquerdo, vale que a tinta é de água). Só tu, para, num ápice (enquanto o Diabo esfrega um olho, aquele onde lhe caiu um pingo de tinta grosso), fazeres desaparecer todos o resto.