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um amor atrevido

um amor atrevido

Fevereiro 22, 2019

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Vieira do Mar

Detesto-te sempre com prazo de validade. Um prazo quase tão preciso quanto o ponto de um funcionário zeloso. Tenho um mês, dois vá, para que não me existas ou para fazer-te objecto de escárnio e troça. Tudo em mim é genuíno e é isso que torna ainda mais estranho este sentimento ampulheta, que me permite ignorar-te a prazo, desintoxicar-me dos teus extremos, do teu drama, da tua maneira enviesada e teatral de olhar as coisas. Irritas-me a um ponto que a única solução é esquecer-te, o que faço sem esforço. A princípio sinto-me livre, leve, contente e desanuviada; o meu único engano é achar que é para sempre, que desta vez nunca mais. Devia saber melhor, porque há anos que te esqueço e depois te preciso, num loop temporal digno de uma série daquelas tão na moda. Não que eu ande a contar os dias. O meu precisar é uma insídia, de que mal me dou conta. Uns minutos nos primeiros dias, depois uma hora ou duas a lembrar- te nos seguintes. A seguir, o purgar. Das coisas que me disseste, de quando me tiraste do sério, do quanto levei a mal e da urgência que senti em te ver pelas costas por tempo indeterminado. Tarda nada, e tudo volta a ser Bom em ti. Dizem-me que é dos teus mimos que sinto falta, que isto não é amor. Há de ser qualquer coisa porque aos mimos rejeito-os sem tacto, e desprezo num tom jocoso a tua fervorosa dedicação, a não ser que esteja doente e precise que vás à farmácia. Repugna-me o teu amor obsequioso e a tua tímida bajulação: não é por aí que me sobe a estima nem a opinião que tenho de mim. Antes pelo contrário, ages através do filtro da devoção que me tens e os teus actos nada contêm de verdade, são apenas um meio para um fim no qual, apesar do teu desencanto, teimas em ter fé. Falas-me baixinho, como se a medo, para não contrariares a doida que te calhou amar, finges-te emasculado e submetes-te aos meus caprichos, porque sabes que é a única forma de nos equilibrarmos no arame por mais umas horas, antes de nos esbardalharmos cá em baixo num qualquer desacordo fútil que acaba em tragédia. É no que dá, gesticular demais quando estamos lá em cima. E vai então que regressas à minha vida sem saberes. Não lhe chamaria saudade porque ver-te não me acalma nem me adoça. Os nossos reencontros são frios e anódinos como meros conhecidos que se devem algo; não tenho vontade de te tocar nem de aprofundar o que nos separou e agora nos junta. Às vezes, evito olhar-te como se tivesse vergonha de não querer mais, e eu nunca tenho vergonha de nada. Mas quando bate o ponto, preciso de ti como de pão para a boca; depois, quando te vejo, fico sem fome. Nem precisas de fazer algo, basta a tua ânsia infantil de estar comigo e o paradoxo de saberes que isto nunca dará em nada. E as tuas desagradáveis implosões perante esse fardo que carregas há anos, admito. Não sei o que me prende nem o que me afasta; sei que é como um passo de dança desastrado entre os dois, numa mímica descoordenada, que acaba inevitavelmente com cada um a sair por lados opostos do palco, obrigada, obrigada, adeus até à próxima. Só sei que isto cresce, o que quer que seja que me prende a ti quando reconheço que és. E a cada dia que passa, existes mais e mais, tomas forma como uma escultura nas mãos de um mestre, primeiro um calhau na paisagem, depois uma pessoa, a ganhar forma com o cinzel que te esculpe na minha cabeça. E então preciso chegar a ti, seja de que forma for. Nasce-me uma inquietação e uma ânsia de pertença, e é como se nunca tivesses deixado de ser importante, uma parte fundamental do meu mundo esquizofrénico e prepotente, que mata e ressuscita e ouve vozes. Sei que não percebes nada disto; nem se te o traduzisse em equações matemáticas, muito menos se apelasse à tua parca inteligência emocional, mas também não importa. Não tenho especiais interesses nem me movem desígnios óbvios, o meu rio não corre para o teu mar, mas em certos meses até parece que te amo; porque são meses ímpares, porque que calham entre os nós dos dedos, porque têm um erre no nome e podemos comer marisco: sei lá eu dos meus intercalares amorosos. Por isso declaro aqui formalmente que irei encurralar-te uma vez mais na minha temporária e extemporânea fantasia. Porque, meu querido odiado querido, quando a menina quer, a menina tem. Mesmo que seja para ter o que não quer.

                                                            

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Setembro 03, 2018

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Vieira do Mar

 

 

 

A desilusão é tramada, corta amores como facas e estraçalha a empatia que nos assiste para com os que nos são queridos, os nossos imperfeitos queridos. É um não retorno para o encantamento, uma conclusão amarga de precisão matemática. Pior do que o ódio, a auto comiseração, a raiva ou o desejo de agredir. Porque tem consequências, enquanto o resto é volátil: vai-te foder vai tu, e, no dia seguinte, o que queres para o almoço. A desilusão é o reverso de uma epifania: num repente, em vez da luz, há uma escuridão que paira, e que sucede a incredulidade. É irreversível como o rolar daquele seixo rio abaixo, nunca mais onde antes esteve; ali quieto, naquele recesso da corrente, à esquerda, onde só refracta a luz ao poente, a prender aquelas algas de talos verdes que em breve dançarão livres, quando se for. Nunca mais o sol lhe baterá às cinco da tarde naquele ângulo exacto e que segundos antes lhe iluminava a parte há muito lascada, de arestas arredondadas por milhares de anos de carícias aquáticas. É outra pedra, outro rio. É outra vida. Uma merda, esta pedra que muda de sítio, este nunca mais o que foi; o não poder desver, desouvir, dessentir. Não é o que se fez, é que não se pode desfazer. O rolar da pedra para uma nova e temporária morada, pode ser insignificante para o curso do rio, mesmo que o volte a subir, por força de um qualquer mistério do universo, como os salmões na desova. Não é a abrangência da correnteza que nos muda, não é a soma das manifestações do outro, furibundas, ofegantes, silenciosas, arrogantes, teimosas, ardilosas e infantis que fazem o todo. Porque isso nós conhecemos e aceitamos, sabemos ao que fomos, o amor é exímio em minimizar o que não presta. É a puta daquela minúscula pedra, a harmonia que de repente se desfaz num colapso infinitesimal. É contemplarmos alguém que amamos e que afinal não sabemos quem é, que se transforma, que desmantela a sua persona à nossa frente, gesto por gesto. Desilusão é sentir que fomos ao engano, é estranheza e confusão, tristeza e desconforto; é a vontade de arrepiar caminho, imediatamente. Ao contrário do que se diz, não é proporcional à grandeza das expectativas: sentimo-la quando já não existem expectativas, quando achamos que temos a certeza do outro, quando o aceitamos como um todo, uma soma de bondades, egoísmos e idiossincrasias, que fazem parte do pacote, da nossa visão abrangente do rio. É sermos confrontados por algo que diverge no fundamental daquilo que achamos ser o nosso absoluto conhecimento do cerne de aguém. É a ternura que nos falta depois da desavença, a corrupção das memórias queridas; é um lugar solitário onde o arrependimento é inútil e a pena, um encolher de ombros. Um sítio frio e inóspito onde ecoam em vão as desculpas e as emendas nunca feitas. Os antigos escondiam os desapontamentos no sotão, a descendência aleijada e imperfeita, para que nunca tivessem que os ver ou saber. As reacções de quem se sente desiludido são quase sempre moralmente reprováveis ou parcas em educação, como empurrar a comida para a borda do prato e escondê-la debaixo da folha de alface. São vistas como incapacidade de perdão, teimosia, inclemência, vitimização, ou simples orgulho, tolo como todos os orgulhos. Mas o que acontece em nós é só a aceitação inevitável do fim e uma forma de economizar: as palavras que vierem a seguir ao que foi dito e feito estarão sempre a mais, mais vale calá-las. O desiludido é fonas e poupadinho, acha que gastou demais e em vão.  É um adeus súbito e talvez inesperado da perspectiva de quem nos desilude, mas que para nós já vem tarde pois este novo outro, que agora nos foi mostrado, afinal, não passa de um estranho. Um estranho aleijado, que nos magoou, que nos deixou sozinhos a lamber as feridas que inflingiu, que incomoda, que agora olhamos de cima porque nos achamos melhores (não somos). Que nos apetece trancar no sotão. Se não num daqueles vitorianos, ao menos num recanto poeirento da nossa mente, até nos esquecermos de que um dia existiu e nos feriu de tal forma, que mudou para sempre os nossos rios e afluentes. Os desiludidos são os mais egoístas dos sofredores; terão sempre o outro a quem culpar pelo súbito desapego emocional, sublimando assim o seu desejo inconsciente de retribuição. Porque todas as histórias de amor são também de vingança.

 

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                                               (the disappointments room)

  

 

 

 

 

Maio 24, 2018

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Vieira do Mar

 

Querida, coitada. Calhou-te a versão desactualizada, o upgrade que nunca foi feito, um composto de partes gastas, uma função mecânica carente de vida. Tu não o tiveste inexperiente e moldável, pulsante, vulnerável e obsceno, provinciano e altivo, romântico, miúdo, intacto. Sobrou-te um simulacro de marido, um arremedo de progenitor, um repetente na disciplina da família, vamos tentar outra vez, conformado e envelhecido, corroído pelos detritos do passado. Querida, nunca o soubeste incrédulo, pai pela primeira vez, o olhar de medo e espanto, quando tudo nos era ainda possível. Nunca lhe sentirás a frescura de outros carnavais, tem-lo em segunda mão, amputado emocional, amealhador, amargo, um esgar forçado onde antes esvoaçavam sorrisos, esmagado pelos erros da idade adulta. Foste uma segunda escolha, e embora te vejas uma segunda oportunidade, não passas da peneira com que tapou o céu. Nunca lhe sentiste o bafo desesperado da paixão, mas apenas o encosto da conveniência; não sabes do que a casa gasta, não lhe conheces a crueldade nata, embora partilhem a malícia e engendrem planos lunáticos de guerra no vosso covil secreto. Essa cumplicidade que partilham assenta primordialmente no ódio aos inimigos que inventaram. Não tens na tua posse o seu corpo pálido e imberbe, abandonado às noites alcantiladas e orgíacas da juventude. Querida, coitada, nunca lhe conhecerás a inocência feroz de quem teve um dia a certeza do cumprimento de todos os sonhos; resta-te uma espécie de cadáver esquisito, uma alma de pontas soltas, sem sentido nem propósito, que se tenta reinventar colando os princípios aos fins, sem saber da palavra a seguir, um estrangeiro na tua cama. Arremataste-o sôfrega; ele, que renegou proteger quem devia, o que te deleita porque te sentes única na providência das suas atenções, mas que também te horroriza, porque pode voltar a fazê-lo, basta-lhe atingir a soma certa de desagrados. Eu hoje sou ódio, sabes, mas já lhe fui estrépito, surpresa, morteiros e andorinhas nos beirais; tu és mera reacção vagal, és o encosto possível, és a que se prestou à companhia de quem que não quer estar em casa sozinho para que a saudade e a consciência não lhe gritem aos ouvidos. Querida, eu fui necessária, tu és instrumental: serves o propósito de lhe abafar o ruído da perda, mas mais vale isso que nada, pensas. Eu escolhi não o ter mais, por tudo o que dele sei; tu escolheste ficar com ele, por nada do que dele sabes. Coitada.

 

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Fevereiro 01, 2018

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Vieira do Mar

 

Se isto é sobre o Amor é óbvio que virias aqui parar. Já ouço o coro dos freudianos ao longe, em sussurros celestiais, entoando notas de infâncias mal resolvidas, mas eu orelhas moucas, um dia trato-me do que pensam afligir-me. Irritavas-me como ninguém e sempre me contrariaste, por feitio ou gosto, nunca soube. Não te associo ao cliché do pai herói, porque nunca te conheci diferente, o excelente dos outros era o meu normal. Só muito tarde percebi que foste um golpe de sorte e que contigo me saíra a lotaria dos afectos primordiais. Ainda me irritas, quando revolvo a papelada que nos deixaste e não decifro os teus rabiscos e me pergunto porque raio não tiraste um tempo para nos facilitares os dias depois da tua morte, se foi o que sempre fizeste em vida. Não tenho por onde me guiar, não sei os comos nem os porquês porque não me respondes quando te chamo. Não há uma aragem fria que me arrepie a pele, uma porta a bater, um quadro a cair; nem ao menos uma vela que se apague do nada. Apenas não estás, e não há mistério que me console ou envolva, só um silêncio confuso de ravinas fundas. Não te percebo a letra arrastada dos últimos tempos, em folhas soltas, as notas avulsas com os deveres e os haveres misturadas com uma carta de amor da mãe, um texto meu, uma aguarela tua, uma fotografia antiga ou um recorte de revista sobre um medicamento qualquer. Tudo enfiado à pressa em micas de várias cores, numa lógica só tua, quando te terás apercebido da urgência de sabermos como aprender a tomar conta de nós sem ti. Tarde demais. Não vou falar da doença, não sou de chafurdar em lugares comuns que só avivam as memórias dos outros, orfãos como eu. Prefiro recordar essa veia ribatejana de galaró teimoso, incapaz de fraquezas sentimentais, mas que soçobrava perante o amor incondicional e quase servil com que obsequiavas a tua mulher, e as tuas outras mulheres, por esta ordem. Sempre as preferiste aos homens, mas faltava-te perspicácia e discernimento. Não foi à toa que foste criado pela tua mãe e as suas oito irmãs, enquanto em pano de fundo o teu pai, apaziguador e gentil, a quem saíste. Eu brincava contigo por causa disso: ou davas em mulherengo ou acabarias a gostar de homens, mimetizando as fêmeas que te nortearam a infância. Afinal, cresceste entre mimos exponenciais, panelas e máquinas de costura, tias devotas que te mascaravam de pierrô e nazarena, com as sete saias e tudo, e te levavam embevecidas ao fotógrafo da vila para eternizar o momento. Acabaste a gostar muito de mulheres, por vezes mais do que devias. Nunca soubeste dizer-lhes não. Ainda há poucas semanas me azucrinavas a cabeça com as exigências legítimas de quem está a sofrer (porque a dor transforma as pessoas em bichos feridos, de garras afiadas para os que mais amam), para logo a seguir ofereceres à enfermeira gira que te massajava os pés os sorrisos patetas que me negavas. Sempre a enfurecer-me, tu. Quanto a ela, um estaladão bem dado naquelas fuças maquiadas e não se falava mais no assunto. O tom condescendente com que te respondia, absorta, a tratar-te por você e aiaiais como se fosses uma criança ou um velho pateta. Sem perceber que estava ali um Homem que levava postas todas as honras e condecorações possíveis. Que não era o pijama do hospital que tinhas vestido, mas sim a farda brilhante de oficial general do nosso pequeno mundo, carregadinha de medalhas. De melhor pai, melhor marido, melhor avô, tio, irmão, primo, amigo, vizinho. Até a de mais bem vestido, meu vaidoso querido. Tanta honraria no teu peito que, com o peso do bronze polido, não te terias conseguido levantar da maca, mesmo que o tivesses podido fazer. Agora, o coro dos freudianos exulta: sopranos, altos e tenores, alternam-se a capela num final triunfante, prestíssimo: ignorante, a saloia da bata apertada ajeita-te a almofada sem sequer dar com os teus olhos encovados que se agradam à sua imagem, a fingir ouvir-te o relambório febril de idoso moribundo, sem atentar nas tuas débeis investidas de charme, enquanto pensa no médico casado que a convidou para um café. Meu Amor, ela não sabe que ainda tens trinta e cinco anos, que a achas engraçada mas um pouco vulgar, e que NUNCA foste velho.

 

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 (little miss sunshine)

 

Julho 30, 2017

às tuas ordens

Vieira do Mar

Manifestas a tua dor aos outros de forma gentil, como um pássaro ferido que acorde com a luz da madrugada por entre a ramagem, a cumprimentar em silêncio a manhã. Cauteloso e inseguro, mas num cantar baixo e meigo, como um disfarce (porque a vida te é predadora). Essa gentileza transtorna-me, o modo como a preocupação dos outros para contigo se transforma em preocupação tua para com eles. Para comigo. Não te sei consolar, saem-me palavras tortas e rarefeitas. Ainda bem que são poucas, parecendo que não, nestas coisas, a percentagem conta: menos é mais,  quando se age de maneira tonta porque se nos descoordena o sentir, a inteligência emocional nos abandona e ficamos vadios. A minha estranha postura, quase fria, não tem nada de defesa, meu amor, mas de embate. À espera que invistas contra mim, contra o cabrão do mundo, o filho da puta do universo. Anda, que eu aguento. Às tuas ordens. Ou talvez queira ser contigo como sempre fui: não te tratar nas palminhas, não fazer cerimónia nem dizer-te o que é suposto, como o que todos os que te amam te vêm dizendo há dias. Ou se calhar não o sei fazer. Neste momento, és-me território tão desconhecido quanto marte - ou mais, pois mal te consigo sondar. Só sei que quero dizer-te tudo o que te apeteça ouvir, é a minha forma de te dar mimo. Às tuas ordens. De resto, ando aos papéis. Parece que o coração se me mudou para o lado direito e não bate certo. Como o que te aconteceu: não bate certo, está errado, é o inverso do avesso do avesso do avesso. O que eu gostava mesmo era esconder-te da dor em modo uterino: recolher-te cá dentro, onde ela não te chegasse; dar-te guarida na minha pele, e depois embalar-te numa canção triste, porque, sinceramente, qualquer alegria me parece despropositada e inútil como uma clareira súbita num bosque cerrado. Não sei como te fazer bem. Estar não chega, parece-me. Mas é isso que quero: estar contigo para poderes ficar calada. Aceito de bom grado o teu silêncio – ou isso, ou gritos, queixumes, birras, indolências de formas várias, caprichos e desatinos.  Às tuas ordens. E outra coisa: mais do que a tua dor, comove-me essa gentileza meiga de pássaro inseguro: danada, furibunda, quebrada, ausente e incrédula, a espreitar a medo por entre as folhas... mas com o espírito – esse presumível foragido - intacto (que está. tu é que, agora, não o podes ainda saber).

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Novembro 10, 2016

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Vieira do Mar

 

Foi só um beijo, não foi?; um beijo degustation, uma curiosidade que não matou o gato, alheia a qualquer romantismo, para o qual seria sempre cedo demais. Tão infantil como enfiar um insecto num frasco e vê-lo aflito, arrancar um braço à boneca, ou estraçalhar o carrinho de rodas, embora mais inóquo porque nada em nós se partiu ou aleijou. Uma maldadezinha transgressora, mas daí não veio mal ao mundo. Na verdade foram dois ou três, mas quem os contou? O que interessa é que ganhei à calçada com os meus saltos altos, cujo eco marcava os segundos que tínhamos até nos despedirmos, num equilíbrio perfeito que só balançou com aquele beijo que, ou muito me engano (ou só não me lembro), nem sequer foi correspondido. Entretanto, a noite morreu, a calçada continua lá, a atraiçoar quem não a conhece de gincana; as putas terão sempre um rabo invejável e as minhas pernas continuarão desproporcionais (eu sabia que devia ter ido de botas). Um beijo tão cauteloso quanto atrevido, como o explorador que entra num túmulo que acabou de descobrir (cuidado com a maldição), se calhar a esconder a perversão que nos é comum, embora nunca a tenhamos experimentado juntos. É na conversa que damos cartas, sem sequer falar de sexo (embora também). Mas, depois, um ligeiro entrelaçar de dedos, acoitado pela noite, e foi essa doçura inesperada que me ficou, não me perguntes porquê. Estou com o poeta, mais vale estarmos sentados ao pé um do outro, ouvindo correr o rio e vendo-o. Porque a cidade continua um estaleiro, os jardins mal iluminados, as noites estranhas e mornas, e o beijo entretanto perdeu-se nas memórias que o gin apagou. Foi só um beijo, não foi? (sei que abuso da anáfora, mas antes isso que da retórica). Entretanto, já teremos dado outros, de significância acrescida, plenos de intenção, em preliminares demorados que terão selado supostos futuros, como se o tempo que um beijo promete fosse garantia de alguma coisa. Como se os toques amorosos também não mentissem, com a sua coreografia calculista e cronometrada em função do receio da perda. Como se cada amantíssima jogada não fosse interesseira e bajuladora para sentirmos, no fim, o gosto da vitória, um açambarque de piratas, por ora pertences-me, tenho-te onde quero, rebolo-me no teu ser. Mas que se lixe o cepticismo, muitas bocas prolongam-se a gosto, ficam na pele impressões digitais, gritam-se Oh Deus!, Isso!, Dá-me tudo!, e ignora-se o vazio que nos vem depois de nos virmos. Foi só um beijo, não foi?

 

Novembro 10, 2016

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Vieira do Mar

A gente sabe lá de quem é o amor que não temos, por onde anda, a quem aproveita. Nós não, com certeza. Muito do que temos reside naquilo que não nos acontece. Quando falamos dos dois, o assunto debanda em todas as direcções como uma manada assustada. A linguagem comum do nosso mister é um código confortável que nos mantém o desejo ocupado, ao menos mantemos as línguas afastadas, não há nada menos sexy do que falar do que não nos dá gozo fazer. Esforças-te por não olhar para o relógio e eu esforço-me para não reparar que te estás a forçar. Sai-nos tudo tão natural como petróleo refinado; a superficialidade nervosa, a conversa volátil como uma nuvem de verão. Só o olhar nos trai, quando escurece e perscruta, mas, ainda assim, só vemos no outro a prosaica e terrena antecipação do prazer, mesmo quando este não acontece. Não queremos realmente saber o que o outro sente, intuimo-lo desde o primeiro dia, seja lá quando isso foi, no princípio era o verbo; eu miúda pelas esquinas do colégio a arrancar cabeças às bonecas das outras e tu já a espreitares-me o frenesi destrutivo pela fresta da porta da aula de trabalhos manuais (esta parte inventei, mas podia ter sido assim). Mal tu sabes que, às vezes, queria acompanhar-te aos casamentos com um vestido de seda selvagem a combinar com a tua gravata, dolorosamente aprisionada nuns sapatos muito altos a fazer pandã, os dois apanhados numa fotografia em pose de amigos dos noivos, num status quo entediante e piroso. E depois andarmos pelos fundões da cidade, indiferentes e brilhantes, a estarrecer o mundo, com as minhas gargalhadas de estar feliz a ecoar nos graffitti dos becos de má vida. Não existem poemas de amor para quem não sabe a quem deixar a sorte do futuro. A gente sabe lá de quem é o amor que não temos.

 

 

Junho 10, 2016

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Vieira do Mar

Olha, uma visita turística está bem, mas não te iludas: não quereria percorrer todas as tuas divisões, cerra as antecâmaras antes que veja demais. Nada sei do teu sorriso, mas sei de um segredo nos teus olhos, a única parte de ti que exibes à exaustão, como se ter pestanas longas atestasse qualquer coisa de bom em ti. Já eu, queimei as minhas a prescrutar os teus olhos, pelo que pelos meus, não vais lá. Depois, o meu marido chega, eu faço o jantar e finjo que tenho uma pestana tua na minha sopa, que afasto gentilmente para o canto do prato. Mentira: como-a, juntamente com as ervilhas. Sempre fugiste, pelo que é uma forma de te sentir o sabor. Porque não podes sair cedo do trabalho, porque a namorada tem ciúmes, porque não convém ultrapassar as inconveniências da proximidade. Mas não faz mal: imagino que o teu toque seja o contrário do de midas e não falo de moedas de ouro. Até agora, foste mero prenúncio de desastre natural, mas apenas uma daquelas trovoadas secas que antecedem as monções e que se limitam a criar altas espirais de fogo apontadas para o céu, poupando o verde que existe em volta. Não deves ser compatível nem com alguém do teu género, quanto mais com o teu oposto: consta que estes se atrem, mas só por breves momentos, como sabemos; depressa nos desinteressamos, porque olhar para o espelho cansa a não ser que sejas o oscar wilde. A tua escrita, às vezes inspirada, tem no entanto um quê de piroso, como uma loura bonita vestida de prada que deixa as raízes negras do cabelo à mostra. Queres classe com perversão, mas não existem ladies na mesa e putas na cama, isso é o tema de um livro mau, ou um ideal pimba, que confundes com algo transgressivo. Somos todas putas em todo o lado, até na mesa, mas fingimos bem, basta comer de boca fechada e não errarmos o talher. Mesmo assim, se gargalharmos como a julia roberts podemos errar no das caracoletas. Desconfio que tens alguma da aridez ingénua do homem comum de steinbeck, mas fazes por encarnar a ébria urbanidade de um bukowski estilizado. Embora se desprenda um pudor quase retrógado na tua escrita que te leva a conter o calão, talvez para não desagradar as massas, ou apenas porque não consegues, ficam-te presos os dedos. Achas-te atrevido na cama, mas aposto que qualquer coisa mais do que umas algemas fofinhas e a promoção do dia na sexshop mais fina da cidade, já te repugna. Não estamos destinados um ao outro porque estaríamos feitos um com o outro. Quando chegasse o momento de jogarmos ao rei manda, temo que, se te ordenasse três passos à caranguejo, assim cautelosos e de ladecos, investisses contra mim em rodopio, dez passos à bailarina, convencido de que me estavas a levar a abrir as pernas com o teu encanto natural, um passo à tesoura, menina, vá, que aqui mando eu. Olha, uma visita turística está bem, fiquemos assim: ouvirei atenta as palavras monocórdicas do guia e guardarei o folheto da entrada com o mapa confuso dos teus visitáveis recantos. Assim, cumprem-se ambos os nossos desejos: manténs a distância que sempre quiseste e eu fico a olhar a espiral de fogo até que se extinga no centro da relva verde que piso, a salvo nas orlas, assim não me queimo sem que valha mesmo, mesmo, a pena.

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Fevereiro 17, 2016

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Vieira do Mar

Um texto de amor é um texto de amor. Nem sempre remendado com metáforas entrepernasedesejosmolhados. Um texto de amor é saudades furibundas contigo ainda ao lado. É pés morenos enfiados em chanatas que escorregam em pedras molhadas só para vermos os confins enovoados de uma praia. São tardes na varanda a olhar para as cegonhas e intercalar tratados de eloquência com silêncios de abissais, como quimeras. É encobrir segredos, confrontar ofensas, seguir em frente, não perdoar porque nada há a perdoar, apenas disparates que fizemos porque sim e porque tudo foi ontem. É tocarmo-nos onde mais ninguém tocaria se não fosse a sério, é dizer o que mais ninguém diria se não nos soubéssemos ouvidas, é usar o pressentimento para correr para a outra ou viver a nossa vidinha aparte quando pensamos que tudo está bem. O nosso amor é amoral, esquecido, translúcido e presciente. Não duvida nem desconfia. Não faz cerimónia e tanto anda ao estalo como aos beijos. Mas não levanta a voz, não se ressente e é alegremente ordinário, destravado como um filme cómico para maiores de vinte e cinco. É vernacular, sempre a desmembrar o cinismo alheio, filho da puta canibal, mas também clemente como uma freira bondosa, daquelas que pesam quarenta quilos e vão para áfrica. Raras são as vezes em que não estamos de acordo, mas quando acontece, discutimos à exaustão até não mudarmos de ideias. Depois, seguimos em frente para outra coisa qualquer. Nada em nós se parte nem se reconstrói, não é preciso. Somos intactas. Não nos fazemos favores nem nos agradecemos, basta pedir; nem isso: basta dizer ou calar. Às vezes, um átomo revolto desperta em nós um ciúme azedo e súbito, mas volátil, e quase nunca uma com a outra, o que nos facilita a vida: podemos sempre infernizar a dos outros. A nossa amizade é antiga, somo almas velhas reencarnadas que se encontram até já não se poderem aturar, fartas das tantas vidas bizarras em que foram obrigadas a cruzar-se. Brincamos de ser livres mas, às vezes, mirramos em celas contíguas, duas prisioneiras a comunicar pelo sistema de ventilação e a engendrar irreais planos de fuga. A tua força perante a adversidade, que insisto em confundir com optimismo, irrita-me. Mas calo-me porque tu sabes. Vejo sempre o pior cenário em tudo e nem disso me tentas demover, o que me irrita ainda mais. Muito é preguiça em nós, daí se calhar não precisarmos de conversas de café e preferirmos beber e fumar e comer de boca cheia - mas com os talheres certos. Esta última parte é tua. A telepatia não é um dom, mas uma artimanha de quem não lhe apetece esforçar-se muito, o que é o caso. Quero que te lembres da piscina insuflada no meio das ervas daninhas, da paz perfeita naquele bar longínquo com os homens mais bonitos do mundo, da tua gata aninhada no meu colo (aguenta-te), dos gins improvisados com as sobras de fruta, das minhas costas no teu horrível sofá, dos nossos cães a fugir pela areia, e do inferno que passei junto a um mar onde só contigo consegui regressar. Sabes que irei logo a correr, quero lá saber se para o outro lado do mundo, irei.

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(...) 

 

Dezembro 19, 2015

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Vieira do Mar

Não que sejas um monstro, nem mesmo um traste, és apenas a metade de um homem cuja outra metade um dia quereria ter sido boa. És meia torrada com pouca manteiga, os primeiros capítulos de um livro gordo, um vinil riscado por alturas do refrão. És arraçado de maldade, embora não sejas propriamente mau: só vês o mundo zarolho. És a parte importante de um projecto que falhou, porque a parte que o fez falhar.  És a metade, não de um todo (nem sequer de um todo), mas para aí de dois quartos. A metade da metade. És o bólide que abranda a meio mesmo que nada se atravesse na reta iluminada; a parte que não recua nem pede perdão, que chafurda na pena e se excede na raiva, que atira com o desgosto ao ar para quem o apanhar, que marra contra comboios de chelas, ignorando o desvio a tempo. A metade que tu és agarrou-se ao meu eu inteiro. Fui mais matéria, mas menos espírito. Agora vou apanhar-me as pontas soltas,  colar-me os cacos, serzir-me por dentro e deitar-te fora, como bagagem, tem que ser. Não deixarei mais que que trepes por mim como um pai natal de varanda, pendurado num qualquer apêndice meu até ao carnaval. És pintura inacabada. Não a adoração dos magos,  mas mero esboço de um estranho, à venda na zona turística do centro histórico.  Não és o escravo incompleto, não descendes de um escultor maior. És a metade que falta, mas não a metade que conta. Escolhe a vida, não escolhas a vida. Espera!, escolhe a vida, mas dá-lhe com tudo:  não arrepies caminho , nem vás por atalhos, capuchinho, não cortes nos cigarros nem no perdão;  aguenta-te à bronca, que o teu fim está longe, para lá do horizonte que segura o mar. Mais depressa vês a américa.

(21 grams)