Abril 25, 2006
le notte di cabiria
Vieira do Mar
E, por vezes, abandalhar-me: amarrar o cabelo sujo num rabo de cavalo oleoso e repuxar com violência as raízes escuras; desfazer a pele de brincos, anéis e relógio de pulso, e esgravatar-me as unhas até se lhes descarnar o verniz, às lascas; esborratar-me as pálpebras com desleixo, livrando-me mal e porcamente de riméles e ailaineres, deixar-me os lábios secos e gretados, a implorarem por um baton, um gloss que seja; vestir-me camisolas largas, de homem, cuecas brancas e altas sem pormenores de renda, meias de lycra com malhas fendidas de cima a baixo; enfardar-me num bolo de pastelaria, talvez dois, atrever-me a flatulências várias e desbragar-me num riso obsceno de dentes estragados e gengivites incuráveis; mandar o ginásio à fava, criar barrigas, duplos queixos e cansaços, não ter maneiras à mesa, comer com as mãos e de boca aberta, cotovelos ferrados no prato; evitar desodorizante e levantar-me os braços como quem bate asas, esquecer-me do creme no corpo a seguir ao banho e não imaginar por uma vez que as mãos com que me unto as pernas, são as tuas; sair porta fora a cantar como uma louca desafinada, descalça, com pastilhas e beatas coladas à sola dos pés, a aceitar tostões de transeuntes piedosos, comportando-me como quem tudo perdeu e nada teme. No entretanto, no entanto, deixa-me ir ao cabeleireiro, que hoje é dia de madeixas e há vaga na manicure.