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um amor atrevido

um amor atrevido

Abril 19, 2006

sweet november

Vieira do Mar

Saudades. É tão simples e certinho, como dois e dois serem quatro: tenho saudades. Dos rumores da tua presença, talvez amanhã talvez na sexta, do quiçá da tua chegada, da iminência da tua voz a meio da manhã e da mesa para dois, quadrada, demasiado grande (para quê, tanto espaço?); tu, do lado de lá, longe de mais e eu, debruçada sobre o prato, oferecida, a morder-me os lábios e a lamber-me os dedos, os cotovelos mal-educados em cima da toalha para que pudesse esticar-me o queixo um bocadinho mais na tua direcção, para que me visses tão nítida que nunca me duvidasses por um segundo sequer. Esqueci-me que, mesmo assim, mesmo com a certeza do meu rosto a fundir-se no teu hálito, serias tu a calares as palavras e a esqueceres-me primeiro.

 

Abril 18, 2006

leaving las vegas

Vieira do Mar

Que sou convencida, imbecil, idiota, excessiva, incómoda, de faca na liga. Não sou nada: estou só a resgatar-me ao vício, a chutar metadonapalavras na veia. A ressacar. Ocupada no cultivo de uma horta de textos tempranos, algures numa remar de província, longe (se não de tudo, pelo menos de tanto). A ver se nesta ginástica mental de cava semeia, me canso e esvazio e desintoxico de ti. Se me livro o globo ocular de tanto passar, em repeat e rewind, as still frames do teu riso vulgar concentrado nos meus gestos.

Abril 17, 2006

closer

Vieira do Mar

Saber que não existes, alivia-me, alija-me o fardo de não te ter tido. Nunca exististe porque eu te criei, moldei-te à minha precisão da altura, meu pigmaliãozinho de araque. Aquele que cruza os dias indo de casa para o trabalho e do trabalho para casa, que passeia o cão que não tem e se abriga e desalenta na sua própria insónia, que espera impaciente que discorra mais um domingo enquanto se asperge em delírios escritos de palavrosa grandeza, esse, não existe. Ou melhor, só esse é que existe - nada mais tens para venda, não comportas quaisquer extras nem me tentas com promoções ou incríveis descontos, leve dois paga um. No meu mercado de tubérculos-suspiros e de leguminosas-enxertadas-de vida, és coisa sem valor venal, que não justifica sequer o dispêndio administrativo da hasta pública; se atender ao direito de propriedade de qualquer uma das minhas veias, dir-te-ei res nullius. A constatação é-me razoavelmente feliz: por agora, só existe a microscopia do que de ti sobra; nada resta da nobreza que te inventei.

Abril 17, 2006

vertigo

Vieira do Mar

Subíamos a arriba descalços, a lua já a boiar no céu, a tactearmos com a planta dos pés os resvalos do caminho, a picarmo-nos nas arestas dos seixos em fóssil, deixados a descoberto pela invernia. O cansaço do dia a invadir-nos e ainda a subida ia a meio. Eu, colada atrás de ti, como sempre, a minha cabeça por entre os teus glúteos, que me iam mostrando onde pisar. Sempre me indicaste o caminho a seguir, ainda hoje o fazes: mesmo quando sou eu que te dou ordens e berro e esbracejo que nem um polícia sinaleiro ou um arrumador na ressaca, daqueles que insistem sofregamente para que estaciones no lugar vago que é a sua concessão de vida. De repente, uns mirrados segundos em que me esqueci de que os teus glúteos se engalanavam de força bem na frente do meu nariz, empinado contra o vento, curioso, a tactear um ar diferente (porquê? não sei, talvez pela distracção infíma de não me teres agarrado o cotovelo, no momento em que olhei para baixo e vacilei no escuro).

 

Abril 15, 2006

gone with the wind

Vieira do Mar

Divirto-me a trepar e a descer a hierarquia dos meus amores, como se me empoleirasse numa daquelas escadas de pintor com dois lados, no meio de uma sala atafulhada de bricabraques coloridos, a minha vida cheia. Apercebo-me de que todos sem excepção foram amores, sempre atrevidos, alguns desmesurados e excessivos, como os saltos das botas que gosto de usar ou as palavras com que gosto de me entreter. Noto, beliscando-me a pele da memória, que nenhum me foi especialmente doloroso, mas também nenhum me foi indiferente: ainda hoje, gosto de todos, amavelmente, só não gosto de ti. Reparo que não te enquadras na fotografia de grupo, não és uma daquelas caras sorridentes que me brindam de copo no ar e no entretanto balanço-me no escadote, escalando-os e deixando-os para trás, aos meus amores. Tu, vejo-o agora, estás num dos cantos da sala vazia, os jornais espalhados pelo soalho a protegerem-no dos pingos de tinta como nos protegemos das lágrimas. Olhas-me do vértice onde te páras e um raio oblíquo de sol parte-te ao meio o sorriso complacente, deixá-la medir-se os amores que foram os outros, é deixá-la... está entretida, isto passa-lhe. Às tantas levantas-te, aproximas-te de mim de trincha em riste e, com um encolher de ombros, desatas a pintar-nos em todos os sentidos e a várias demãos: os outros, os degraus, a estrutura de alumínio, os outros (salpicas-me o pé esquerdo, vale que a tinta é de água). Só tu, para, num ápice (enquanto o Diabo esfrega um olho, aquele onde lhe caiu um pingo de tinta grosso), fazeres desaparecer todos o resto.

Abril 14, 2006

breakfast at tiffany´s

Vieira do Mar

Estranho, como a fotografia não desbotou nem um bocadinho, assim não imitando a vida. Lá estamos os dois, muito novos, de olheiras tão cavadas e fundas que nem a maquilhadora de serviço conseguira disfarçar, os sorrisos meio abertos, uma das pernas de cada um ligeiramente à frente e de lado para realçar o efeito fotográfico e assim permitir o encosto desvelado dos nossos parietais, a pose estática, numa mudez quase assustada e que os outros quereriam agradecida e expectante. O meu vestido rodado e a jaqueta curta tipo Chanel, numa seda selvagem muito leve, como leves não eram as nossas olheiras cavadas e fundas, debruadas a noites de amor e de contas à vida em claro, as pérolas da avó ao pescoço. Tu, demasiado à solta dentro de um fato demasiado largo, que parecia alugado mas não era, que era quase fantasia de Carnaval, de tal forma te caía, inopinado. Os dois, mascarados que estávamos: eu, de princesa, uma audrey hepburn de bairro, bonitinha e apresentável, mas sem a classe nem a ossatura perfeita, e tu, de palhaço rico; ambos num malabarismo circense às voltas com as bolas coloridas do presente e do futuro, ai que ainda nos caem no chão, vê lá se não perdes o equilíbrio, agarra-me, por favor. Eu, a acabar a noite descalça e enfiada à pressa no meu fato de saída, coisa de bom corte, grife italiana, a querer que me chegasses e mo desenfiasses e toda a gente se fosse embora para me aqueceres, entre as tuas pernas, os pés frios, gelados, do chão de pedra do palacete emprestado. Onde começámos um dia a fingir que já éramos crescidos.  

 

Abril 13, 2006

chinatown

Vieira do Mar

Atravesso a rua e fixo o olhar na zebra da passadeira, enquanto lembro o teu repúdio mole, pouco convicto; vou lá, deparo-me e permito-me a raiva em repeat mode, boquiaberta, uma e outra vez. Mas cedo finalmente ao dó, àquela maresia rasa do lamento, e a raiva acaba por se levantar e oferecer o lugar à pena, senhora mais velha e experiente, que chega em último porque dada a vistas curtas, hesitações e coxeios. Vejo-te uma fragilidade patética (pateta?) na afronta demasiado óbvia que me diriges. Sim, porque tu esqueces-te que eu sei que manobras com uma habilidade um pouco saloia os outros para alcançares os teus fins (que eu também sei quais são mas aqui não digo). Ah! se eles soubessem o quanto te estás borrifando para eles, para mim. Acima da tristeza que imaginas, erradamente, espraiar-se cá dentro a cada palavra tua, está a tua vaidade. Não queres saber de mim, mas és vaidoso de mim, queres que os outros me saibam. E esses outros, marionetas nas tuas mãos, bonecos a braços com uma maldade emprestada, lá vão dançando ao som da tua música, vira o disco e toca o mesmo. Que estranha forma vida.

Abril 12, 2006

out of africa

Vieira do Mar

Ainda hoje me pergunto porque razão teimei em não te ver, naquele dia em que combinámos o encontro. Onde estavas, enquanto os meus olhos calcorreavam as costas plásticas das cadeiras, as beatas no chão e aquela nódoa discreta na lapela do empregado de mesa, que me espreitava a incontinência nervosa das mãos pelo canto do olho, enquanto me trazia mais um gin (Bombay, se faz favor, tem de ser Bombay)? Acaso teria sido diferente, se nos tivéssemos sorrido logo ali as meninas dos olhos e tocado as maçãs do rosto, quentes de rubores quase infantis? Como é que poderemos saber quando um entusiasmo de fim de Verão, embalado a prenúncios de Outono, está em ponto de rebuçado e pronto a ser mais qualquer coisa do que um ritual de passagem entre estações do ano?

Abril 12, 2006

to have and her not

Vieira do Mar

É então também isto, o Amor: a completude no olhar e no sorriso do outro, o antónimo da sua ausência e as lembranças boas que abancam, decididas, como um tia velhota que nos chegue para o chá. Lembranças douradas pela cortesia afável da nossa memória selectiva, dourar a pílula. É-me tão fácil voltar àqueles dias antes destes, quando tudo nos era ainda luminoso e carregado de possibilidades, de hipóteses que nunca chegámos a pôr. Mais ou menos a partir de agora (desde sempre?) pagamos com a ausência no rosto o peso da lonjura dos outros, carregamos o fardo de termos sido tanto e tão pouco e eles, só tanto (um dia). Não há descanso nem sossego no conhecimento, há apenas silêncio (sabes que te circulo nas veias e te segrego bílis e desprezo, por entre loopings e cambalhotas e gargalhadas nervosas).

Abril 10, 2006

the end of the affair

Vieira do Mar

E, então, toma-me de assalto aquela imagem budista de que a vida é como um rio, que quando passa não mais se repete, pois nada fica nunca no mesmo lugar. Depois da enxurrada, já se sabe, as coisas não voltam à harmonia da sua quietude anterior, por mais que se aprestem os trabalhos de reconstrução e chegue o voluntariado da ajuda internacional, assentando arraiais e montando tendas pelas nossas planícies adentro. É claro que, para quem já vivia de escolhos e se mantinha à tona numa babugem feita de bocados podres de madeira e cascalho e materiais orgânicos flutuantes e perecíveis, a esbarrarem contra os diques que tanto custaram a erguer, a diferença é pouca: é quase a ilusão de que nada nadinha mudou. Mas, para quem espreitava, agradado, da entrada acolhedora da sua palafita e lhe topa agora as estacas (antes sulcadas no fundo lacustre, ricamente adornadas com anos de coisas felizes) algures à deriva contra o molhe de betão, fica mais difícil, essa coisa de encarar os destroços, mesmo que apenas através das palavras escritas e das fotografias desmaiadas, guardadas em arquivo. Preciso por isso de uma empilhadora dentro de mim, daquelas com várias pás que cheguem alternadamente aos recantos mais difíceis da minha geomorfologia magoada. Pago bem e à hora.