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um amor atrevido

um amor atrevido

Maio 31, 2006

repulsion

Vieira do Mar

Fico aqui à tua espera e temo que não venhas. Fico à tua espera, mesmo sabendo que não vens. Sei que não vens, mas mesmo assim fico. Ainda te lembrarás de mim? Fico. Não me perguntem nada, não me macem, deixem-me ficar apenas. Fico ao frio desta noite gélida das duas da tarde de um dia de Maio. Fico à mercê das vagas revoltas que me lambem o cabelo e me ensopam os ossos, pendurada numa luzinha tremeluzente numa esquina ensolarada desta cadeira. Fico à janela deste cigarro, único farol de mim. Desde que saíste eu nunca mais fui a mesma. Quando cheguei e não estavas não me encontrei. Procurei-me e procurei-me mas em vão. Não sei de mim, onde me terei guardado, onde me terei metido. Não sei de mim. Se calhar levaste-me. Procura recordar-te, vê se te lembras. É importante para mim. Faço-me falta. Pensa bem. Tenta recordar-te. Comigo terás levado também aquela minha saia curta berrante que agora não sei usar. E aquela gargalhada aberta, que tão bem me fazia. Procura bem nos bolsos do casaco. No bolso de trás das calças onde eu me metia quando passeávamos pela rua agarrados. Procura-me entre o teu cabelo, vê lá se não é a mim que ainda cheira o teu cabelo. Procura-me bem no teu peito, pelas vezes que nele adormeci em tantas noites de televisão. Procura-me no teu olhar. Não é outra senão eu quem ainda vês, sentada de costas para ti nessa esplanada, onde por acaso te apanhas se distraído do jornal. Procura-me nas tuas narinas. Diz-me lá se não é a mim que te cheira a camisa que vestes pela manhã. Não voltas eu sei, mas ao menos devolve-me, ainda me tens?

Maio 30, 2006

hable con ella

Vieira do Mar

A falta de ti maça-me, desconforta-me, aparece-me inesperada a meio da refeição, quando me sorris da aletria na canja com que formo o teu nome, às vezes o teu apelido, empurrando as massas com a colher para o rebordo do meu prato; cutuca-me o ombro, reclamando-me a atenção dispersa, como uma vizinha intrometida que teimasse em me contar os podres da viúva do andar de baixo; salta-me ao caminho dos meus rituais diários, desavergonhada, exibindo e esfregando-me na cara os quilómetros que nos distam, num relance obsceno de gabardina aberta por um louco. Cansa-me, a falta de ti, lembra-me aulas de geografia em módulos de noventa minutos, uma melga a zunir no escuro, uma espécie de comichão bem lá no fundo das costas, onde as minhas mãos não chegam. É assim como uma amante despeitada que invadisse o remanso caseiro da legítima, ligando-lhe com insistência sem nunca pronunciar palavra. Entedia-me a tal ponto, a ideia de que nunca estiveste, que anseio por saber o que haverá para além dela, como se pouco mais tivesses sido do que um longo e interminável intervalo para publicidade.

 

Maio 26, 2006

the perfect storm

Vieira do Mar

Se me perguntas, digo que sim, que podes falar à vontade, que nada me constrange nem me faz mudar de cor. Estou habituada a seguir em frente pelos terrenos por ti minados e em manter esta aparência fresca de quem acabou de sair do cabeleireiro depois de um mergulho na praia. Mesmo quando me rebentas sob os pés, estilhaçada continuo. À suspeita de uma mina mal-enterrada ou ao vislumbre de uma granada de mão, nem me tento desviar, não me abrigo nem me cubro a cabeça com os braços: avanço resoluta e piso o teu chão com mais força ainda, como se te esmagasse a felicidade sem mim que teimas em embandeirar em arco. Podes contar-me as novidades, falar-me dos teus projectos, amigos acima de tudo, confidentes de cúmplices sorrisos, apoios morais, palmadinhas nas costas, estamos cá para isso. Podes repetir que o teu Amor é outro e que me esqueces sistematicamente depois das duas da manhã. A tudo, digo que acho bem e que até concordo. Não me cabe a mim explicar-te por á mais bê que estás redondamente enganado, que persistes em escarafunchar a felicidade nos buraquinhos errados e que o vazio que tens aí dentro não se finta assim, do pé para a mão, no dia em que decides escolher outras solidões por companhia e te agarras a elas como uma lapa na aflição da maré vazia. Embora não deixe de ser verdade que todos os Amores (mesmo aqueles que inventamos antes de o serem de facto) são âncoras que nos prendem à razão quando desatamos a derivar com a força desmedida das marés e com os desmandos das nortadas de Verão (que teimam em nos arrepelar os sentidos, da popa à proa).

 

Maio 26, 2006

jungle fever

Vieira do Mar

Não teres tempo para o meu atrevimento sempre foi teu apanágio e a minha salvação. O que sinto por ti é como ter contraído malária: o bicho está cá dentro e volta e meia manifesta-se, apesar dos cuidados profiláticos que faço questão de ter, antes de cada viagem. Aliás, a profilaxia induz, ela própria, sintomas ligeiros da doença que é suposto prevenir e é por essa razão que as cautelas e os caldos de galinha, que engulo a horas certas, não me evitam suores frios, febres súbitas e tremuras, face à hipótese remota da tua presença no meu metro quadrado.  

Maio 25, 2006

cat on a hot tin roof

Vieira do Mar

Não tens tempo para mim. Existem relógios, cronómetros até que te medem o tempo, esse tempo que não tens para mim. Pergunto, porque não existe um qualquer aparelho que antes nos meça o amor, que nos tome o seu peso, que nos indique suas coordenadas, as suas polegadas, as suas jardas. Não tens tempo para mim. Pergunto por uma máquina, por um mecanismo, mas não do tempo antes da distância do amor. Um turbilhão com reserva de marcha, não para o tempo mas para amar. Uma complicação de amor e não de tempo, desse que não tens para mim. Um mecanismo que nos dê o pico em que se estreia e o yotta em que se fenece. A quantos graus ferve, de quantos são seus quilates, seus volts. Não tens tempo para mim. O seu lúmen, de quantos Joules a descarga dele em nós. Porque para o tempo, que até nem existe, dispões de relógios caríssimos onde o cativas só pelo prazer (?) de o veres escapar, para que dele te sobre essa doce (?) impressão de o teres tido, de o deteres ainda. Mas nunca para amar, para amar não tens máquina, não tens tempo. O tempo que te aponta sempre o presente, quando toda a gente sabe que nenhum ponteiro consegue mostrar o presente. Quando o presente é «um cabelo a cortar em quatro», quando toda a gente sabe que o presente ainda se não pensou futuro e já nisso é passado, quanto mais o tempo. Os relógios são para o tempo e para o presente que não existe, não são para mim, não são para amar nem para o amor, que esse, como toda a gente sabe é eterno.

 

Maio 23, 2006

chocolat

Vieira do Mar

Com um pé ainda nos sonhos, mas outro já vigilante, arrisco um duche ao banho de imersão; seco-me à pressa e visto menos roupa do que aquela que aconselhariam os humores bipolares da Primavera; falta-me um casaco de malha, um bolero, talvez, que me aconchegasse os braços, nús das tuas mãos (e os meu pêlos adormecidos, sem por que se eriçarem). Saio de casa, dou uma volta à chave, ignoro a prudência das duas da praxe. Na pastelaria da esquina, engulo meia sandes de queijo e enxoto o torpor matinal com uma bica muito curta. Dos olhares desinspirados dos transeuntes, que desenham esquadros no pavimento com passadas renitentes, retenho para aí uns cinquenta por cento. Chego ao escritório. Sobre a secretária, respira um relatório comatoso, composto de duas páginas ao invés das quatro que me haviam sido pedidas, enquanto as vistas da minha janela, dotadas de inesperada lonjura, repuxam com insistência as meias mangas da minha atenção. No entretanto, finjo um interesse colorido que vai bem com tudo o resto. À noite, enroscada num dos lados do sofá, degluto dois quartos de lasanha semi-descongelada, vejo o filme até ao segundo intervalo e acabo esmagada no doce almofariz do cansaço e da inevitabilidade da perda. Arrasto uns farrapos de consciência até às entradas do sono, que me chega pontilhado por imagens de ti - de uma das tuas orelhas, do teu olho direito, de parte do teu cabelo e da tua mão esquerda, que gesticula no ar para que eu a apanhe: do teu corpo, enfim, que acarinho à distância mas nem mesmo assim por inteiro. Falas-me em três beijos, contei pelo menos seis. E tem sido assim desde que te foste: a minha vida pela metade.

 

 

Maio 23, 2006

it´s complicated

Vieira do Mar

Com a mão direita e uma calma postiça, afastas a madeixa de cabelo que me ensombra a cana do nariz; enfias-me a outra mão por entre a alça do soutiã e estica-la como uma fisga de ir aos pardais, dedilhas-me até ao umbigo, num nocturno de Chopin; percorres-me os nós dos dedos com a ponta da língua, como um chef que provasse uma redução e aferisse da medida exacta de um ingrediente novo; engalfinhas-te ao redor da minha cintura e enredas-me no interior das tuas pernas, enquanto me sussurras que fazes e aconteces e que isto e que aquilo; gargalhas alto, de modo quase inconveniente, quando não me encontras roupa interior, aproveitando para te encaixares em mim como um lego; fazes-me cócegas, fazes-me rir, fazes-me amor e rebolamo-nos como miúdos em dia feriado. Somos os únicos ali e acabamos cansados, línguas de fora como cães a arfar, barrigas para cima a cuscarmo-nos as estrelas do nada surgidas e o que será que está para além de. Plenos, satisfeitos e indiferentes ao que não sabemos. Chamas o empregado, são dois cafés e a conta, hoje pago eu.

 

Maio 18, 2006

dracula

Vieira do Mar

Mais um dia perdido, em que não me rompo a placenta deste querer nascituro que me berra aos ouvidos, insatisfeito de fome. Mais um dia em que me embalo e aconchego no quentinho das lembranças e das vontades por cumprir, que nascem do rasto mentiroso das primeiras. Não sei se te dê a mão e te pegue ou te deixe na roda do convento para que outras te amparem, ou então te esqueça para sempre no canto mais remoto do infantário, enroscado no teu umbigo a murmurares-me colo. Não sei se te puxe, se te empurre, se te amarre uma venda e te rodopie obrigando-te à cabra cega, ou se te dê o peito e te alimente como uma loba que se rói de prazer e saiamos por aí a fundar cidades, daquelas importantes, rodeadas de portos marítimos bons para o comércio e para as guerras. Dava-me um jeito danado, esquecer-me da superlatividade dos teus beijos. Acredita que deitaria muitas menos palavras fora.

 

Maio 18, 2006

the piano

Vieira do Mar

Em tempos, quando me tomava de uma ternura dormente e inexplicável que para ti me empurrava a boca, falei-te em vontades e na precisão do silêncio delas. Vontades de beijos, melhor, de beijinhos, daqueles doces como os de mercearia antiga, vendidos à dúzia, uns rosa outros brancos, que engolíamos sem dar tempo a que se derretessem contra o céu da boca, como os nossos beijos de verdade. Falei-te, então também, de abraços mudos aos molhos e à grosa, de gemidos baixinho e de outras quietudes essenciais. Agora, são outras as vontades e feitas de outras meiguices, embora ainda e sempre de horas perdidas a olhos nos olhos. A doçura efémera dos beijos deu lugar ao turbilhão das palavras que ambos quereríamos em dia mas que, felizmente, nunca o estarão, para que haja sempre mais. Palavras, por estranho que pareça, ainda um bocadinho escondidas do mundo e a espaços murmuradas, para (ontem como hoje) não despertar das coisas boas os seus contrários.

Maio 17, 2006

last tango in paris

Vieira do Mar

Às vezes, duvido-me e ponho em causa a parcimónia com que te vou consumindo e o cuidado excessivo com que te vou debicando, dando-me ganas de te engolir inteiro, de um trago e de uma só vez, numa manifestação alarve de impaciência e enfado. Nesses entãos, não me basto na rotina de esticar o pescoço para dentro de ti nesta pose cautelosa e educada de quem põe o dedo no ar e pede licença para entrar, e que pretende ser não mais do que uma manifestação polida do meu desinteresse em saber os segredos que escondes no rebordo da tua secretária, misturados com post its antigos e pastilhas mastigadas. Tenho dias gatunos em que me bastaria com pouco menos do que abrir-te à sorrelfa e penetrar-te furtivamente e a horas mortas, sem que desses conta e quando não estivesses em ti, para te vasculhar os papéis com a sofreguidão de um mendigo que procurasse comida num contentor, como se do que então encontrasse dependesse a minha sobrevivência nas horas seguintes, o meu aguentar-me em pé até à chegada de um novo dia (mais um, sustido a convenções, frases meias e amor demais por fazer).

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