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um amor atrevido

um amor atrevido

Novembro 17, 2006

crimes of passion

Vieira do Mar

Chegaste-me à hora marcada e eu, no meu quarto, enfeitada de alegria e de rendas minúsculas, a cobrirem pouco mais do que púbicas hesitações. Ontem, foi dia da independência, do fim da monarquia, de velas aos mortos, de insurreições vitoriosas e ditaduras vencidas. Foi noite de bordel, de boudoir, de brocados vermelhos, de reposteiros pesados a esconderem a rua e de biscuits a alcovitar à sombra dos psichés. No meu quarto, onde o Amor não resistiu a se despojar das conveniências. Mapeei-me os contornos da cara com maquilhagem carregada, que tu esborrataste de forma artística, respingando o teu desejo pela ponta dos dedos, até o meu corpo se tornar abstractamente expressionista e a tua loucura se aproximar da minha. Houve cambalhotas e pinos no soalho velho e encerado, até à exaustão da Verdade. Pela manhã, fizemo-nos à Mentira como quem chegasse à ponta da prancha de um navio de piratas: o ter de ser a impôr-se à vontade das arrecuas. De repente, nos teus olhos então ainda de riso, a lembrança de um corpete riscado que eu um dia me pus e que tu desapertarias colchete a colchete até a tesão se tornar tão insuportável que esmoreceria, sendo substituída por dois bifes à trindade. Amor pago, o nosso. Mas pago com a mentira árida do dia seguinte, um dia comum, agradável e fácil de levar, com os seus carinhos fingidos e sorrisos presos entre os dentes, como restos de comida. Ontem, fiz-me de tua puta preferida e, no entanto, foi comigo que foste de graça.

 

Novembro 16, 2006

...

Vieira do Mar

Dá-me um sinal de que também tu andas meio coxo, os tornozelos do coração torcidos de tanto tropeçares nas sarjetas do tempo e te enfiares nos buracos do caminho de cabras que é esta nossa estória, mais além mais aquém. Mostra-me que ainda me tens agarrada à pele e que de nada te valeu tentares esfoliar-me e que, por mais duches que tomes à noite, te deitas por vezes comigo. Sei que não sabes que estas palavras são minhas e que só por um acaso me descortinarias aqui. E, a tropeçares em mim, vejo-te em dúvida, será ela? Não, não sabes: não o podes saber, afinal, quantos milhões de pessoas mundo fora se terão já apaixonado e vagado assim à toa, desencabrestadas e a escoicear a dor pelos dedos, a reboque de um timming filhodaputa, impossível de vergar à sua vontade? Sou apenas mais uma das que sofrem de um Amor ao mesmo tempo astigmático e míope: que se dá mal ao longe e não se enxerga (dá-me um sinal).

Novembro 14, 2006

american beauty

Vieira do Mar

Despacha-te, que tenho o pequeno almoço por fazer, roupa por lavar e as saudades dos outros por matar. O relógio da Câmara acabou de dar as sete e tu pesas-me no peito como uma asma súbita. Dói-me a nuca de evitar para os lados o teu hálito a semana passada, e os teus pés estão frios como os de um desconhecido na morgue, um zé ninguém, um peso morto que actuasse por reflexo sobre o meu esterno espalmado contra o colchão. Despacha-te, enquanto disfarço o bocejo dos sentidos; ainda tens que tomar banho, porque não quero o meu cheiro azedo a desprezo na tua carne, como se te pertencesse. Poupa-me ao momento em que te vens como se um cataclismo feliz te inundasse, enquanto eu disfarço um esgar de alívio e aperto as pernas e escondo o prazer que acabaria por vir à tona, tivesse eu um pingo de consideração por ti. Dispenso ouvir-te chiar de gozo aos meus ouvidos, como um rato que abocanhasse um pedaço de queijo rançoso. Hoje à noite, depois da novela em que me imagino a protagonista bem fodida em lençóis de cetim, faço-te uma tarte de limão das que tu gostas, à laia de compensação por te achar patético em não descortinares o meu tédio. Ou em não te importares, o que vai dar ao mesmo. Despacha-te que, quando saíres, o meu Amor estará pronto para entrar e perscrutar microscopicamente o meu desejo, vandalizado por ti a cada resquício de uma nova madrugada.

Novembro 06, 2006

kramer vs. kramer

Vieira do Mar

Traz-me o miúdo como to deixei, lavado, penteado, sem resquícios do teu cheiro ou da tua vontade; o blusão novo, que venha com a etiqueta. Traz-me o miúdo com a etiqueta, aquela de mãe amarrada ao tornozelo. O Amor da minha vida, vê bem, agora um instrumento nas nossas mãos egoístas e de dedos em riste; o nosso boneco lindo, uma motivo para nos orgulharmos do que fizemos e para nos envergonharmos do que somos. Se a alegria dele por estar contigo for desmesurada, e frouxa, a vontade de vir para mim, tu é que pagas, porque eu quero-o feliz, mas assim tanto e ainda por cima contigo, nem por isso. Se for o caso, queixo-me em tribunal, alguma coisa se arranja para te incomodar os dias, nas próximas semanas. Traz-mo às seis em ponto, deixa-o no elevador que ele sobe sozinho, sabes que ainda te quero, que te venero as pálpebras, as falanges, a curva volátil da tua maçã-de-adão, mas que não suporto nem ver-te. É que eu sou a mãe, sabes: foi a mim que ele esmagou a bexiga, pontapeou o esterno e se revirou como uma roca de fiar durante tantos sonos truncados. Não quero que te olhe, saudoso, quando lhe virares as costas. Faz como sempre fizeste: dispensa-lhe a habitual atenção cortês, dá-lhe só aquilo que tens, não te aventures no desconhecido. Traz-mo, para que eu o aninhe no meu colo-cela mesmo que ele não o queira e não esteja especialmente ansioso pelos meus afagos desconchavados de fêmea que se consola, lambuzando a cria crescida. Nada de brinquedos novos e caros, não mo compres nem o iludas porque a verdade, agora, são natais cortados ao meio com o sabre do desamor, e páscoas alternadas com sugestões de alívio pontuadas de solidão. Ele é muito mais meu, repara, sempre mais meu: não são as tuas tardes radicais duas vezes por semana que apagam tantas noites minhas em claro, mergulhada em fraldas, leites e choro; tantas noites, emparelhadas com teu ressonar pesado, suado e indiferente, a embalar-nos, como uma canção desafinada.