Novembro 17, 2006
crimes of passion
Vieira do Mar
Chegaste-me à hora marcada e eu, no meu quarto, enfeitada de alegria e de rendas minúsculas, a cobrirem pouco mais do que púbicas hesitações. Ontem, foi dia da independência, do fim da monarquia, de velas aos mortos, de insurreições vitoriosas e ditaduras vencidas. Foi noite de bordel, de boudoir, de brocados vermelhos, de reposteiros pesados a esconderem a rua e de biscuits a alcovitar à sombra dos psichés. No meu quarto, onde o Amor não resistiu a se despojar das conveniências. Mapeei-me os contornos da cara com maquilhagem carregada, que tu esborrataste de forma artística, respingando o teu desejo pela ponta dos dedos, até o meu corpo se tornar abstractamente expressionista e a tua loucura se aproximar da minha. Houve cambalhotas e pinos no soalho velho e encerado, até à exaustão da Verdade. Pela manhã, fizemo-nos à Mentira como quem chegasse à ponta da prancha de um navio de piratas: o ter de ser a impôr-se à vontade das arrecuas. De repente, nos teus olhos então ainda de riso, a lembrança de um corpete riscado que eu um dia me pus e que tu desapertarias colchete a colchete até a tesão se tornar tão insuportável que esmoreceria, sendo substituída por dois bifes à trindade. Amor pago, o nosso. Mas pago com a mentira árida do dia seguinte, um dia comum, agradável e fácil de levar, com os seus carinhos fingidos e sorrisos presos entre os dentes, como restos de comida. Ontem, fiz-me de tua puta preferida e, no entanto, foi comigo que foste de graça.