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Um ano. Um ano cheio de fins, em que todos os dias te esqueço. Um ano cansado de ouvidos e de dedos à escuta, na mira de um suspiro teu, de um relance foragido, de um sopro. Um ano repleto de palavras minhas e parco em palavras tuas, de memórias brumosas, como fantasmas de piratas no nevoeiro, sem rumo. Um ano de um querer solitário e a noção risível de quão patético é o amor de um lado só. Inevitável, avassalador, incumprido, no seu silêncio emparedado. Sempre a fingir que não é nada, que não foi nada. Caíram, entretanto, muitos factos sobre mim, coisas, chatices, conteúdos programáticos: encheram-me até cima, até toda eu ficar ocupada em trabalhos, até o meu último fio de cabelo ficar com a agenda preenchida. Não adiantou: um ano, dois anos, dez anos, nunca deixarei de pensar em ti, de te querer e de fazer caber um bom bocado de ti dentro de mim. Mas não to digo, nem pensar: não suportaria que me olhasses com a estranheza e a perplexidade dos indiferentes, como se olha um maluco desdentado que nos pedincha um cigarro na rua.
Louvámos a praia até ao poente, nesse dia. O sol, passageiro clandestino, encarniçava-nos a gazeta, usurpada ao trabalho. Arranhavas-me por razões várias as pernas molhadas, fazendo com que os dedos dos meus pés se esticassem de prazer como os de uma bailarina em pontas e fossem deixando sulcos de limpa-areias ao fim do dia, na areia molhada, consoante te ias submergindo mais e mais em mim, um mapa batrimétrico entre as tuas pernas, e eu, cá dentro, uma rede de recifes de coral e grutas de uma anatomia simples, a encherem-se das tuas marés, a corroerem-se um século a cada nova enxurrada, eu, na vertical, a envelhecer debaixo de ti, um ser em camadas geológicas, corroídas pela paixão. As nossas sombras, mais estreitas a cada guinada do sol na direcção do nada, repetiam cada beijo enrolado em areia, cuspido no meu umbigo, a barriga, os braços, as virilhas, a tremerem de inveja das tuas explorações subterrâneas, tão meticulosas quanto trapalhonas. Foste tão pouco meu como o sol, na sua última curvatura roxa antes de desaparecer na linha do horizonte, uma linha que parecia desenhada por um miúdo a régua e esquadro lá longe, só para que soubéssemos que há coisas inultrapassáveis, como a pressão do oceano, as paredes de corais e os dias seguintes.
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