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um amor atrevido

um amor atrevido

Maio 28, 2007

l´amour en fuite

Vieira do Mar

És um tipo vulgar (e pensar que foste um deus). Tens pouca piada, até me custa a lembrar, o quanto me fazias rir, o coração descompassado e o formigueiro entre as pernas, um humor incendiário que me apetecia rasgar e devorar, num ímpeto pré-histórico. Quando bastava uma pilhéria, uma chalaça, uma laracha. O que escreves, lê-se. É assim mesmo: lê-se. Lê-se bem, como uma receita que queremos tentar, uma notícia de jornal, um anúncio, um letreiro de dentista, um sorriso ao canto da boca, de passagem. Mas pouco mais. Tempos houve em que te achei um quase génio da escrita mundana: vivo, provocador, uma invulgar destreza no entrelaçar de sentimentos proibidos, nos finais inesperados. Afinal, era apenas eu que não te esperava, que não te sabia assim, como és: vulgar, um tudo nada pretensioso, a exibires as letras como se um cachimbo ao canto da boca, um lencinho ao pescoço, um bigodinho cuidadosamente aparado, biqueiras reluzentes, o ego inseguro à espera do afago amoroso de terceiros. Apaixonada, imaginava-te um dom, e sonhava com a fatalidade de honrares a minha existência com o resto dos teus dias de excepção. Hoje, nem por nada quereria o óbvio tédio da tua vida, na minha. Excitava-me, então, a falta de pontuação, de maiúsculas, de vírgulas, de iniciativa, de um pouco de loucura. Uma roleta russa, perigosa, o jogo matreiro no qual descobria os teus significados ao virar de cada frase. Hoje, constato que és previsivelmente simpático, normal, um bocadinho entediante, até. Lamento, não te detesto, como decerto me preferirias: para mal dos teus pecadilhos, apenas me desinteressas. A cor dos teus olhos, afinal, não contém o mar, muito menos o céu: a cor dos teus olhos, não passa de uma composição genética de fortuito bom-gosto.

 

Maio 18, 2007

everyone says I love you

Vieira do Mar

Ponho-me a saia de ganga rasgada, a de que não gostas porque demasiado curta; invento-me loura natural, depilada, as unhas subitamente crescidas. Treino o olhar disponível, exagero o contorno dos olhos, repuxo as pestanas de preto e enrolo-as para fora, cor de cereja nos lábios. Espalho rubores pela cara, componho-me, numa pintura alegre e garrida. Inspiro o ar cá fora, emergindo de um longo mergulho, e percorro as ruas num passo rápido, urgente, como se o futuro estivesse ali mesmo ao virar da esquina, impaciente, à minha espera em horário útil, nem um segundo a mais; o futuro: um funcionário público com pressa de chegar a casa. Percorro as ruas com uma alegria inesperada e deixo que as gargalhadas me trepem, saguis pequenos e nervosos. Sigo o caminho a direito das domésticas, com os seus avios de supermercado, o passo errante das miúdas de liceu, com os umbigos e o riso à mostra; sigo os passos cautelosos dos velhos, com as suas hesitações e pausas para descanso, e o trilhar sonoro das empregadas de balcão, agarradas ao telemóvel, a contarem os trocos para o tabaco. Enquanto me ensaio e me descubro sem ti, sou a sombra feliz de toda a gente.

Maio 10, 2007

sleeping with the enemy

Vieira do Mar

Que vergonha, agora, quando penso nos disparates confessados, nas juras de amor sôfregas, remoídas na solidão do quarto, as paredes a fazerem-te as vezes. Que vergonha,tantos despudor e promessas aos santinhos da minha devoção, para que te pusessem no meu caminho, para que não pudesses viver sem mim. Que tolice, tantos impropérios gritados em silêncio, as febres, a fome, o choro contido nos entremeios dos lençóis. Eu, amarrotada, como os lençóis. Que perda de tempo, a pedinchice desnecessária, a choraminguice, o beicinho inútil. A paixão é uma cegueira danada, uma solidão desmiolada, egoísta, absorta, desligada. A paixão afugenta o bom-senso, a razão e a bondade das coisas, de todas as coisas. Enquanto ilumina o outro como um vitral de igreja e o refracta para todos os lados, num bailado colorido, acinzenta e esbate as formas do que é importante. É injusta, mentirosa e supérflua. Mas, um dia, estranhamente, quando menos esperamos, o nosso eu adormecido, o capaz de amar mesmo algures alguém e muito, desperta do sono envenenado como a princesa de uma fábula; sacode dos ombros os restos do seu sonho moribundo e acorda para a vida verdadeira, para os caminhos sinuosos do Amor de Facto, aquele que sobrevive nos meandros entediantes das afecções diárias. A paixão é um rebate falso, uma promessa de nada, uma perda de tempo e de saúde, dez passos à retaguarda, cinco à caranguejo. Por isso, regozija-te: estou finalmente acesa para a vida e alegremente te digo, nunca saberás o que perdeste.