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um amor atrevido

um amor atrevido

Junho 27, 2007

bleu

Vieira do Mar

Exaspera-me, a estrita incumbência dos que vão chegando. É como entrar numa sala vazia, tendo o meu eco por agasalho. Depois da explosão de vida que me foste, os outros não passam de balanço estatístico, de contabilidade organizada, de um conjunto indistinto; na melhor das hipóteses, de um qualquer nome colectivo. Não te comparo: não foste melhor nem pior, não houve tempo. Mas é como se todos os que te seguiram fossem mulheres, crianças ou estátuas. Tu foste o gesto, a absoluta coincidência da perfeição do gesto. Foste o segundo que antecede a morte, o relance do meu nascimento, o resíduo do primeiro beijo, o resquício da dor de parto. Foste uma boa ideia que dava um filme, uma coreografia arrojada, uma música em estado de graça. Depois de ti, os outros não passam de uma desculpa esfarrapada, de verbos de encher os meus dias, tempo a mais que tenho entre mãos. Amo-os por bondade, como se me tivesse tornado freira, voluntária em África ou puta altruísta. Tamanho o buraco negro que escavaste em mim.

 

Junho 16, 2007

the others

Vieira do Mar

Podia continuar assim para sempre. A escrever sobre o que não vivi, o que não tive, o que perdi: um tratado sobre o desencontro, a incompletude, o extemporâneo. Compêndios acerca do pouco, do raso, de como de um cesto se faz um cento e das tripas, coração. De como sou boa, em espremer o tutano, em, no meu colo vazio, rosas; de como me aprumei, em dos restos fazer um festim, roupa velha de amor desfiado, a criar factos perante argumentos, desmanchar e voltar a fazer, água mole em pedra dura. Podia continuar assim, bela eterna sem senão, um pássaro na mão, coração quente, amor para sempre, a palavras de prata, difíceis como bilros, sem silêncios de ouro. A acarinhar-te a lembrança a tratos de polé, com mil cuidados e caldos de galinha, amor querido, amor batido. Podia continuar assim para sempre. Afinal, ele há mil maneiras de morrer.

Junho 12, 2007

existenZ

Vieira do Mar

Vejo-te naquela névoa baixinha que enfeita os sonhos que abrem alas ao espavento da madrugada. Trazes contigo toda a vontade do mundo, avanças sem medo, corres na minha direcção como a parte pirosa de um filme, em câmara lenta, e desaguas um sorriso longitudinal no ar quase parado. Projectas para trás o penteado fora de moda, enquanto eu vacilo, algures entre a alteridade do espectador e o envolvimento da personagem. De pé à tua espera, carente, orgulhosa parada, não sei se triste se contente, porque não me vejo, apenas me percepciono. O dia, entretanto, a fazer-me olhinhos, namoradeiro, enquanto as persianas fechadas rangem com o calor súbito da manhã e se espreguiçam, alheias. Então, como num pesadelo de criança cuja mãe lhe foge, ultrapassas-me o olhar, expectante para com o que encontras para além de mim, por cima do ombro da minha vista. Eu a chamar-te e tu agora de costas, como se me tivesses atravessado um espectro. Viro-me para trás, a tempo de ter ver desaparecer as fraldas da camisa suada na esquina. Fico pregada ao chão. Tenho cinco anos e pregada ao chão. A minha mãe, que não me ouve; o elevador que cai e nunca se despenha. O meu corpo num ângulo estranho, desafiando as leis da gravidade, e eu a torcer a garganta, a espremer um grito, um alinhavo de som. Acordo e abençôo o dia, agradecida, aliviada: não por ter entretanto acordado, mas sim por tu não teres parado.

Junho 10, 2007

gone with the wind

Vieira do Mar

Tinhas de arranjar maneira. De me fazeres começar o dia baldeando-me de novo para os teus lados. Maneira, de me pores a espreitar pelo retrovisor, a vasculhar as ruas, a medir o perfil de quem pára ao meu lado no sinal. De me fazeres faroleira, a apontar para o mar de carros que engole a cidade a cada manhã embaciada, vasculhando marcas, modelos, matrículas, sinais de alerta. Tinhas, de me levares a controlar este, o outro, quem sabe aquele ali que dobra apressado os cantos da esquina e rasa a velhota que, pendurada num saco de xadrez por onde espreita uma couve portuguesa, se atreve à passadeira. De arranjar maneira, enquanto sorvo o galão a escaldar cuspindo vitupérios (estúpido, pedi morno), trinco a torrada do meio ou começo a ler o jornal, do fim para o princípio (nunca leio o mais importante). De seres este homem à minha frente, de ombros magros alteados pelos chumaços do casaco, como se dissesse que não sabe, que não se importa, com um traseiro triste que mal enche as calças e umas mãos de aranha que não têm lugar vago nos esconderijos do corpo, nervoso, miudinho. Tinhas de arranjar maneira, de me dares o troco na banca dos jornais, enquanto me espreitas por detrás de notícias sobre meninas desaparecidas, ditaduras que oprimem e ditadores que enlouquecem. Maneira, de seres todos e nenhum. De voltares à minha vida, arranjada, ordenada, cronologicamente serena, perfeitamente editada como um bom filme dos óscares (voltaste à minha vida). Agora, arranja maneira, diz que sonhei, que estou a inventar.