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Quando saíste, deixei de escrever. Quer dizer, escrever, escrevia, mas nada que me saísse das entranhas, então quietas como um bicho à escuta. Sabia que não lhes poderia mexer, às entranhas: sair-me-iam remoinhos de dor pela boca, às golfadas. Temi que a dor se infiltrasse ainda mais nas reentrâncias da própria dor, como se se comesse por dentro. Ter o que escrever, contradiria a minha vida de então, alimentada a restos de silêncios, a detritos de lembranças mudas. Costumavas chegar-me e, com um beijo distraído, soltavas as palavras que, aprisionadas nas minudências do dia, ansiavam por tal gesto: um gesto que lhes assegurasse a pertinência do amor. Depositado o beijo, e as palavras espreguiçavam-se, cinderelas despertas; respiravam, como um vinho velho depois de aberto. Não obstante a tendência que sempre tive para as calar fundo, por defeito e por feitio, trepavam-me, contrariavam-me, salmões subindo o rio na desova, e eu escrevia. Primorosa e conscienciosamente. Feliz, inventava histórias de amor com finais tristes e condoía-me. No fim, voltava para a cama e envolvia-te o ressonar com os braços mornos, confortada com a alteridade da ficção. Mas, aos poucos, a escrita deixou de me fluir fácil, predominante, eloquente, e passou a forçada, com hora certa, demarcada da escassez notória do beijo, cada vez menos distraído e mais compenetrado da sua condição de beijo. Por essa altura, já eu não dormia e caminhava por negras veredas, meio cega, perdida: um espectro dentro de um corpo, um sopro de vida, o reconhecimento apenas da fome. As palavras, deixei de as experimentar antes de as usar; de as provar, de lhes testar a síncope, pois tanto fazia, e, por fim, arrumei-as a um canto, como limpezas de Primavera. Saíste de casa e levaste-me o léxico, o talento, a vontade de lavar o cabelo e de conversar com deus. Um dia, muito mais tarde, ao correr da pena e ao virar da esquina, choquei com elas, velhas amigas que, inesperadas, se riam para mim (ou rir-se-iam de mim?), irrompendo-me no peito como o perfume de antigas namoradas.
Tenho, dentro de mim, muita gente que se atropela. Uns, irritam-se quando mastigas, estranham-te o ressonar, deitam fora a aliança; outros, mordiscam-te os dedos, bebem-te os fluidos e acompanham-te o ritmo das flatulências. Há-os cerimoniosos, dados às vénias, aos salamaleques e às hipocrisias da corte; e há os que te invadem sem aviso prévio, te roubam a escova de dentes, dormem com a tua almofada e ocupam-te o lado do sofá. De quando em vez, irrompe em mim a brigada do ódio, com as suas fauces lisas, sedentas de guerra, que acarretam silêncios e, a espaços, um ou dois canibais, que te provam os braços e te cozinham a língua. Quase em permanência, um desfile de tristes, eufóricos, felizes e de suicidas, com as suas expressões de redil vazio. Há, ainda, o psicopata assassino, que te amarra os pulsos, te corta às postas e te assa no espeto; e amantíssimas noivas de branco despidas e teor virginal, que alternam com varas de putas gastas, que te exigem uns trocos, te fazem um broche e cospem para o lado. Mais do que o amor, a raiva, o nojo, o tédio, a sobranceria e o riso, sinto por ti pena, uma enorme pena: por nos rodeares e jamais acertares; por atirares às cegas, fazeres contas de cabeça, tacteares no escuro. Por não nos saberes nem nos adivinhares.
Quem dera, fosse tão fácil, despir-me de ti como deste vestido, quando a areia da praia me namorisca os pés; substituir o teu dedilhar virtuoso pelo escorrer do bálsamo protector e pelas estradas de sal seco que se me desenham nas omoplatas, depois de sair da água. Quem dera, desligar-te, como ao telemóvel; retirar-te a bateria para que te não estragues, te gastes em vão, atirar-te para os fundos de uma gaveta qualquer, inábil, inútil, silente. Quem dera, fosse tão fácil, trancar-te as portas como as da casa, três voltas à chave, deixar-te às escuras, de gelosias corridas e vidros abertos; quem dera, seres tu, a imperceptível aragem à qual viro costas quando saio e não volto; seres as contas acertadas, a luz desligada, o carro na garagem, a mercearia fechada e a rua vazia. Quem dera, poder descartar-te, entregar-te à vizinha para que de ti tome conta, te dê de comer; deixar-te em dia, como ao trabalho atrasado, arrumar-te numa resma ao canto da mesa com a caneta por cima, perfeitamente alinhada com os lados das folhas, à espera do pó dos dias dos outros. Fechar-te para obras, guardar-te na parte de cima e esquecer-te, como camisolas de Inverno, e não te usar porque me arranhas a pele, me apertas o pescoço, me fazes suar. Quem dera. Mas não. Carrego-te comigo, como bagagem em excesso na volta de uma viagem, três ou quatro souvenirs imprestáveis, very tipical made in china, uma dúzia de postais ilustrados sem selo, uma máquina fotográfica avariada à chegada.
Tenho um fraquinho por ti. Convidas-me para um café, pedes-me um conselho, que tal esta gravata, que chatice, o selo do carro, que giro o novo modelo e eu, um fraquinho por ti. Telefonas-me que não dormes, preocupado, amolgado, que porcaria de dia, o IRS, a multa, o escalão, o modelo, o formulário. Queres a bica bem cheia, o bife mal-passado e dispensas, displicente, a sobremesa cubista, enquanto eu me lambuzo e te sorvo, envergonhada, atenta, vidrada. Falas-me da família, da mulher que te controla, a chata, a querida, que te adivinha os humores e te descasca a fruta, redonda, pressurosa. Que te apareceu uma alergia e uma antiga namorada, mais os pneus carecas e a revisão atrasada, conheces alguma oficina. E eu que sim e um fraquinho, um fraquinho por ti. Que brilhantes banalidades, que importantes frivolidades. Uma áurea que te envolve como uma mortalha inspirada, o que dizes a parecer brilhante, dramático e engraçado, tens carradas de razão. Os olhos e os pulsos, tão estreitos e tão peludos, a pose arrufiada e a madeixa desarrumada. Um lanche, uma tarde, uma conversa banal, e eu esbugalhada, à beira de te levar a sério, e sai um baile de finalistas, um tiro no porta-aviões, os cinco do euromilhões, um solstício de Verão. Largas pérolas de sabedoria que sopras na minha boca, que abre e se arrasta, do centro até às bochechas, num riso quase devoto, fugaz e brincalhão, como um daqueles duendes que desarrumam as casas. Que gostas muito, muito dela, que és doido pelas crianças, as caraíbas e a eurodisney, que este ano é que vai ser, que maravilha, que homem amável, daqueles que não há mais, que grandezas vislumbro, nesta apologia sentida do entorno familiar, nesta pública devoção. E eu, fraquinha, fraquinha (fraquinha por ti).
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