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um amor atrevido

um amor atrevido

Julho 24, 2008

on golden pond

Vieira do Mar

Amei-te antes, muito antes, de te conhecer. Quando te vi pela primeira vez, limitei-me a constatar um facto e a reconhecer a evidência do teu corpo, obviamente concebido para encaixar no meu até ao ponto de nada verter entre ambos. Tive tonturas e náuseas, coisa de que não estava à espera, mas que agora até entendo: pode ser desmesurada, a emoção de chegar a casa, e revelar-se somaticamente. Nada aprendi que então não soubesse: antes de nós, andáramos a perder tempo. Achei-te tão inevitável como primeiro ser dia e depois noite, e quase feio, embora de imediato me tenha apetecido lamber-te a pele branca, muito mais branca do que na fotografia que me enviaras, como se fosses água fresca e eu cheia de sede. Ainda sem nada termos dito e já as palavras obsoletas e extemporâneos, os preliminares. Tive vontade de uivar, arfar e copular - não necessariamente por esta ordem - logo ali em cima da mesa, com aquela ausência de moral que assiste aos repentes animais, em especial aos que urge satisfazer com barulho e sem qualquer outra razão que não a do formigueiro que nos tortura as camadas subcutâneas. Amei-te, muito antes de saber o que era, o sermos o cônjuge de alguém, o precisarem de nós para a comida na mesa, para o entretém; o sermos de tanta gente ao mesmo tempo que acabamos desmembrados e espalhados aos bocados pelos outros, até não sobrar resto de nós para nos podermos dar à única pessoa que não nos reclama. Pode ler-se a olho nu o meu destino nas linhas da tua mão, pelo que de nada te adianta fechá-la, que queres?, vivo com esta convicção, a de que acabaremos junto e velhinhos, aflitos com dores nas costas, esquecidos dos nossos nomes e enterrados para sempre nas imperfeições do outro. Tu, a amparares-me amorosamente a papada e eu, a massajar-te os ossos esboroados e a aliviar-te o reumático, numa suave recriminação mútua por não nos termos encontrado antes, como competiria a quaisquer almas que se reclamam gémeas, ambos sabendo que só o meio da vida é pouco, muito pouco, e que já fomos tarde, muito tarde.

Julho 18, 2008

where danger lives

Vieira do Mar

Um gesto lépido, um encolher de ombros, uma frase. A ela, basta-lhe uma frase, em especial se sincera. Não porque o pretenda ser ou faça por isso, mas porque a verdade circula nos meandros que a compõem. Então ela recolhe-se, como se um corpo estranho. Uma frase simples, que traduza a reacção adequada à provocação sem sentido. Que, de tão normal, mediana (gaussiana), a faz sentir-se diferente, avariada, sem remédio. Que lhe cala as palavras dentro ainda antes que se formem: letras avulsas passarão a correr nela como linfa. A loucura e o desgoverno alimentam-se do excesso que criam; a normalidade é autofágica. Ela preferiria que a razão lhe permitisse ser fugaz (a razão, esse conceito que lhe é longe como um recorte de cordilheiras). Ela quereria não ver a vida na progressão geométrica do desespero. Às vezes, acorda e estremunha, mas nem por isso mais lúcida, apenas mais cansada. Só não é uma criatura sombria porque não se leva a sério. Precisa de fazer nada, para sustentar o delírio. Esconde o desvario nas palavras que não escreverá e encaixa num recanto de si a frase normal, como se esta lhe fizesse cócegas para sempre.

Julho 17, 2008

2046

Vieira do Mar

Quanto mais o tempo passa, melhor te lembro. Coisas a que nem ligava, a forma galgaz como andas, atirado para a frente e a quereres chegar sempre primeiro, e o repetir do encolher de ombros quando duvidas e não queres saber, estão agora desenhadas em mim a traço carregado. Hoje, adivinho a exacta fracção de metro que percorres a cada passo largo e a medida desses dedos cambeiros que costumavam iluminar-me a pele, da falange à falangeta; calculo quantos graus mede o ângulo que se forma entre o teu queixo e o pescoço, e de que modo a curva das tuas sobrancelhas se abate sobre o septo nasal quando desatas a pensar. Nisto não existe qualquer paradoxo: a recorrência da memória, que passa todos os dias pelos mesmos lugares, permitiu-me chegar à precisão das tuas medidas e formas, e à certeza quanto à rigorosa coreografia dos teus gestos. Quanto mais o tempo insistiu para que te arrumasse e esquecesse, mais eu me entretive numa cirurgia reconstrutiva, em viagens rápidas de ida e volta, compondo-te de cheiros e de palavras, e descartando-me do que antes me exasperava e me impedia de nos inventar um passado credível e tridimensional. Hoje, sei-te muito mais do que ontem, embora não imagine para quê me serve, o ter-te inventariado pela noite fora enquanto me espalhava ao comprido na cama. Para uma coisa, talvez: feitas as contas, sei de cor o espaço certo que ocuparias na minha cama de corpo e meio e o quanto eu teria de me encolher para te deixar dormir, ou o quão pouco teria de percorrer, em modo de deslizamento rápido e em termos de centímetros de lençol cem por cento algodão, para te abarcar todo, assim resolvendo de vez a complexa equação que traduz a volumetria do Amor.

Julho 01, 2008

the way we were

Vieira do Mar

Gostava de ti como és, assertoado e bem vestido, composto e melhor nascido, menino de coro e de igreja. Eu, febril e escarolada, que gargalho e que praguejo, que bebo panachês e cerveja enquanto tu vinho tinto, gostava de ti como és. Eu, o top que não diz com a saia, a borbulha no meio do nariz, a puta da ovulação, os berloques falsos nos pulsos, os brincos de filigrana. Eu, que quase não corto o cabelo e roo as unhas até ao sabugo pelos nervos de te encontrar, que me sento e as pernas soltas, descalça debaixo da mesa. Que te afagava as virilhas com as pontas dos pés nus, como vi fazer num filme e tu, com o sorriso chique e um embaraço polido, a disfarçares o prazer que te rebentava nas calças, vincadas na perfeição pela criada da família; e a abanares a cabeça, resignado e divertido, quando te sugeria impossíveis e te propunha impraticáveis. Gostava de ti como és, eu com os tornozelos imperfeitos, os pêlos que escapam à gilete romba, o verniz das unhas lascado. Tu, deus pátria e família e eu a abalar-te a fé, a pisar a bandeira nacional e a arrastar-te os parentes pela lama. Tu, a pose de exilado real a banhos no estoril e eu, a plebeia de um só nome e do apelido comum, aos milhares nas páginas amarelas. Gostava de ti como és, a camisa de algodão às riscas, o relógio antigo do avô que te calhou em partilhas, as botas de montar ensebadas, os sapatos de vela no verão, o perfume italiano e eu, o desodorizante hipoalergénico e o creme nívea nos ombros, as chanatas enfiadas nos dedos, os lenços de seda ao pescoço, a filha de um deus menor enfeitada na loja chinesa. Tu, reaccionário, conservador, culto e irascível, e eu, um nadinha hipócrita e sobranceira, os pobres e o continente africano, a enfraquecer-te as convicções só porque me achavas estranha e me querias levar para a cama. Eu, a interromper-te com descaro a consoada na quinta do douro, as tias emproadas a tombarem os ouvidos moucos para o telefone velho da sala, a sondarem o teu rubor súbito e a chamarem-te menino. Eu, lunática e aluada, ontem como hoje, a acreditar que foste tu o leitor das dezoito e trinta que aqui andou por mais de uma hora. E que, enquanto me leste, não perdeste a postura nobre nem o vinco perfeito das calças (que as tuas mãos, não obstante, terão feito por amarrotar, enquanto me procuravas na pele e o sangue azul te fervia).