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um amor atrevido

um amor atrevido

Setembro 30, 2008

thomas est amoreux

Vieira do Mar

Continuas por cá, a fazer o quê não sei. Mais fácil assim, não é? Aqui não gritas e eu não choro. É um descanso regalado: vais sabendo do que me falta e do que me sobra, sem que o mesmo te falte ou sobre a ti. Existe algo de doce e de confortável, não achas?, no compromisso unilateral do que escreve e na saciedade daquele que religiosamente o lê. Uma espécie de regresso a casa sem teres que explicar a ninguém como correu o dia. Remendas-te com bocadinhos meus, satisfeito porque quando me lês me tens despreocupadamente, sem mexeres uma palha. Sabes que quando falo nos outros te minto, que é manobra de diversão, poeira para os olhos, embora à primeira leitura um ligeiro sobressalto, será que. Não que te faça mossa, até de mim nos outros tu gostas de saber. Acho, aliás, que me preferes nos outros: é seguro e indolor. E que alívio!, eu não saber do exagero de tempo que perdes comigo, a fingir que vens pela excelência da escrita, coitada da escrita, uma prosa rarefeita que não justifica o trabalho. Convém-te, pois claro!, que eu à mão entre um café e um cigarro, enquanto desapertas descontraído a gravata. Eu a jeito, pronta a usar, de uma vez ou às prestações, sem dores nem ralações, sem corpo nem textura e ainda menos o odor pegajoso de algum desejo que aflorasse só com o estar perto. Que sorte!, poderes convencer-te que gostas do que escrevo e não de mim, e que queres lá saber, pois os filhos e a mulher em casa, o jantar pronto na mesa, a colega lá do escritório, que é gira e boa e se mete contigo, a loura no descapotável que até comias se não desse sarilho. Ah, que descanso!, livre da urgência e da marcação serrada, dos telefonemas a desoras e do querer sempre mais, pois só um almoço não chega, porque não um jantar, porque não agora, porque não mais vezes, quero mais de ti, quero mais e mais e mais. E que bom para mim também!, repara: não te fartas nem me desiludes, não me fodes nem me abandonas, não me enganas nem me aldrabas, não me baralhas, não me desconcertas, não chegas tarde e a más horas, não te vens em três minutos, não me deixas a arder na cama nem me juras que a vais deixar.

Setembro 17, 2008

the notebook

Vieira do Mar

De nada me valeram, os que vieram depois do que entre nós não houve. Por tua causa perdi o olfacto e o paladar e todos os homens me sabem ao mesmo. Procurei-os nos antípodas de ti e cuidei de escolher formatos e feitios que não os teus, numa fuga em frente, como se. Nuns casos, diverti-me; noutros, arrependi-me, mas sempre a porcaria do coração aos solavancos, a malbaratar-me em entusiasmos pré-fabricados, que cansaço. Quiseram-me muito e tratam-me bem, mas vai dar ao mesmo porque não tenho escolha: passados dias, e a minha carne rejeita-os como se o transplante falhado de um órgão estranho. Por tua causa tornei-me puta, se não me queres é porque não presto. Abro-lhes as pernas e o sorriso, finjo que gosto de sushi, que prefiro as rendas ao cardado do algodão e que os saltos altos não me magoam quando ando. Mas ponho-os a todos com dono antes de o sol nascer: deixo-me escorregar, encostada à porta da rua que acabei de lhes fechar na cara, a odiar o rasto que deixaram no meu corredor. Não há nada de transcendente no prazer que me dão: come-se quando se tem fome. Quanto ao resto, amo-te sem o menor indício de desespero; apenas deixo que a tristeza me faça cócegas numa ou outra lua nova, e é se me distraio. Não tenho qualquer esperança de que tu um dia qualquer coisa, pois foges de mim como o diabo da cruz e é assim que deve ser. Quem sabe só me interessas enquanto obstáculo intransponível contra o qual gostaria de chocar, esparvoada, algures ainda neste tempo de vida. És um empata, o meu empecilho de estimação, um chove não molha que me embaraça e me troca as voltas, mas eu já não saberia viver de outra maneira. Tenho cá dentro a persistência devota de uma mulher de província, enganada pela lábia de um caixeiro-viajante, que gasta as horas num desvelo obsessivo para com o filho ranhoso que é a cara do pai.

Setembro 16, 2008

the purple rose of cairo

Vieira do Mar

Não, não acabou. Gostava que tivesse acabado; gostava de ter lavado de ti as minhas mãos e ponto final parágrafo, mas dou por mim aqui, neste sítio contigo dissimulado dentro, como uma arma com disfarce regateada na feira, das que nem parece que magoam. Pestanejo e cá estou, jazente e escondida, no único lugar onde sei que te tenho; onde já te amei tantas vezes que enjoei o salitre do teu corpo; e onde exorcizo a minha banal existência, exagerando-te e ampliando-nos. É por isto que preciso de continuar a querer-te com a desmesura com que se quer nos filmes mudos, e a escrever o arrebate das tragédias a preto e branco, com grandes planos que são grandes demais e gestos de amor abruptos, como saltos de insecto ou cortes inesperados na fita. É aqui que te esqueço e repudio e me apaixono por ti uma e outra vez, e onde às vezes mais não és do que uma lembrança antiga, desbotada como um linho de avó, que me inspira ao tacto. Aqui, prometo-te a eternidade adiada, enquanto fazemos amor e as contas do IRS, enquanto conferimos os dedos um do outro, as brancas no cabelo e a lista do supermercado. Aqui, deixamos o telefone tocar e a porta bater, e eu engulo todos os sons que não sejam o das nossas respirações em dueto. E esqueço-me de quem sou, querendo-te para o resto da vida e mais um dia, e dizendo-to avidamente à sombra da prateleira dos enlatados. Por isso, não, não acabou: estarei condenada, parece, a voltar aqui, a voltar a ti. Tal como tu, condenado a leres-me, a leres-me sempre, num impulso alcoviteiro e a uma distância sem remédio.