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um amor atrevido

um amor atrevido

Janeiro 23, 2010

the proposal

Vieira do Mar

Gosto muito de muito em ti: que não saibas onde se guardam as coisas, que finjas saber a resposta quando te pergunto se o azul se o verde; gosto da abrasão gentil da tua barba e do modo como sorves o cigarro e soltas o fumo de lado, para que não me acerte na cara. De dizer o teu nome em voz alta. Gosto. De quando me telefonas e me cantas um sucesso gasto do cançonetismo pimba, concentrado nas doze cordas, a esfumaçares saudades em espiral pelo canto da boca. Gosto da meiguice desmedida, desse jorro de ternura que não me dá tréguas, e que todos os teus poros façam por me agradar, embora me agrades tanto com tão pouco esforço, naturalmente, assim como se respirasses. Gosto das toalhas molhadas que te esqueces de pôr a secar, do botão do forno que afinal não ligaste, da carne que só está pronta no dia seguinte; e que me descubras a um domingo uma garrafa de licor de café, quando o corso na rua, com as crianças geladas de frio nas suas asinhas douradas, escudadas por matrafonas gordas, tanto me aperta o coração como me mata de riso. Gosto de quando te perdes na linguagem crua do prazer e dizes que me fazes e me aconteces e que eu isto e aquilo, enquanto as tuas mãos substituem algures em ti a minha boca; e gosto da voz grossa e arrastada, desse elã melancólico feito de poesia, uisqui velho, infância feliz e sons da rádio. Da canção de intervenção sempre na ponta da língua, dos ideais socialistas que fraquejam na incongruência do sotaque beto, e do elitismo bairrista que por vezes te sacaneia as convicções de esquerda. Gosto que não precises de olhar pra trás quando passa uma mulher bonita, que nunca me largues da mão quando andamos na rua e que me agarres e me puxes quando um carro se aproxima da berma. Gosto da coragem com que entraste na minha vida, da inconsciência juvenil com que abriste caminho em mim e do espírito de aventura com que me desbravaste tristeza fora; e gosto dessa insegurança tão masculina de quem que não tem a veleidade sequer de sondar a parafernália esquizóide que são os mistérios femininos. Gosto de te ser muitas coisas: a tua deusa, o teu dormir, a tua dona, o teu pleito; um aviso pela manhã, um rebate de consciência, um aperto no coração, um consolo, um eco, pontas soltas, arritmias, formigueiro. E gosto dessa tesão a desoras, quando me adivinhas de costas no escuro (o meu corpo desprevenido enquanto o resto à solta, em sonhos indecifráveis).

Janeiro 21, 2010

it´s a wonderful life

Vieira do Mar

Parvos, andamos parvos (já ninguém nos aguenta). Esfregamos a felicidade na cara dos outros, esborratamo-los de impaciência, piedade e escárnio. Ele é meu querido para aqui meu amor pracoli e todos à nossa volta esbracejam e se afogam neste mar delicodoce, como se uma novela brasileira em que elas são fáceis e dengosas, ou como se um casalinho da Rinchoa que se abraça aos solavancos na carruagem da linha de Sintra, ela pra mais um dia de nariz enfiado nos calos das doutoras e ele, sem ocupação definida, mas acompanhando-a com esmero à porta do cabeleireiro, onde por fim e a custo a desenlaça. Amor, meu amor, bebé, minha princesa, e as pessoas à volta riem baixinho, que falta de senso, de decoro, a bem dizer já não são miúdos, pais de filhos ainda por cima, e nós aos beijos, melosos, molhados, babados, as línguas expostas que se enroscam desabridas, temos pena se têm nojo, se sentem inveja ou pudor (já ninguém nos atura). Alegres e amantíssimos, lastramos o carnaval pelos lugares por onde passamos e desfiamos um ror de carinho imenso, nas ruas, nos restaurantes, na cama, estarrecidos, aparvalhados com isto que nos aconteceu, quem sou eu que já não sou eu? Para onde foi o que me amargava os dias, já agora deixa-me ver se se esconde entre as tuas pernas ou no fim das tuas costas. Somos sem os demais e sem-vergonha, ignoramos quem nos interpela e fitamo-nos aparvalhados, desconfiados e à espreita: o que me dizem hoje os teus olhos que ontem não me disseram? (já ninguém pode connosco). Andamos de mãos dadas, prerrogativa de crianças e velhos, com dedos que se esfregam e apertam, não vá a gente perder-se, afastados por meio metro. Ou então abraçados, agarrados como lapas, tu a cobrires-me com os braços, os ombros, contigo todo, como se a monção estivesse pra vir e me fosse levar, para lá do pontão, para além do mar. Fazemos um grupinho à parte, desdizendo-os e mal-dizendo-os, a minha mão em concha na tua orelha e a minha boca escondida, que tanto te lambe o after-shave como arrasa as personalidades presentes, aquela ali é mesmo parva, não é? e aquele? um imbecil! (já ninguém nos suporta). Enjoativos e incómodos, num deleite infantil, respondemos torto e a más horas e achamo-nos o máximo, ancorando-nos na protecção do outro. Somos bons, somos os melhores, e estamos plenamente concentrados na arrogância superlativa e deselegante do Amor Respiramos um outro oxigénio, digerimos de maneira diferente, os nossos ossos têm diversa composição, a nossa pele desenvolve uma textura única e os nossos cabelos fomentam toques subversivos, revolucionários, invisíveis ao olho humano. O mundo é o nosso recreio (já ninguém nos convida para as festas).

Janeiro 14, 2010

el lado oscuro del corazón

Vieira do Mar

Preciso que estejas aqui e me salves dos fantasmas que atacam em bando aos primeiros alvores do dia. Espanta-os. Redime-me de alguma forma, como se me absolvesses em confissão, ou como um pai que perdoasse os desmandos do filho pródigo. Eu não sou só eu: sou também isto, este excesso de bagagem que dá multa, os gritos que não ouves quando falo muito, quando falo demais, com o intuito nervoso de espantar o bando de corvos que me cerca e me enegrece em voos rasantes de agoiro. Tenho sempre medo a esta hora da madrugada: sinto-me fraca, na vazante, no soçobro, um fio de gente, um engano cósmico qualquer. Os primeiros autocarros aceleram pela rua ainda vazia, esforçando os motores barulhentos, a televisão repete séries e concursos requentados e há uma preocupação indefinida que paira no ar, como quando tememos que um filho adoeça por ouvirmo-lo tossir no quarto. Já a culpa, essa, é uma luz acesa no meio da sala, que me incandesce e me cega. Há coisas que não te contei só porque não as quiseste saber, mas isto, ao menos, regista para memória futura: quando não estamos juntos, forças adversas aproveitam o eu estar sozinha para me acoitarem à covardia, no silêncio do dia que nasce, indiferente. Vêm lestas, como os autocarros na rua, e eu sou a sua última paragem.

Janeiro 11, 2010

when a man loves a woman

Vieira do Mar

Como é que se escreve a felicidade? Como é que digo sobre as minhas pernas enrodilhadas nas tuas, os meus dedos agentes inflitrados nos teus cabelos, a tua língua a pintar-me a boca a traços grossos? Para quê?, partilhar aqui que a minha pele se ri ao teu toque quente, como se estivesses sempre com febre, sentes-te bem? Quem quer saber?, do meu corpo armadilhado nos teus braços e dos meus olhos, que rebolam pelo quarto sem saberem para que parede devo atirar e deixar explodir o gozo, que não me cabe mais cá dentro. Como é que descrevo?, a impossibilidade teórica desta prática feroz de aprendizes, e as probabilidades disto tudo, que eram de um milhão para um, e que constavam do meu mapa astral, feito por uma colega de trabalho, da página dos signos na revista cor-de-rosa, que me aconselhava a ficar em casa, ou das previsões da dona são, a empregada doméstica que das duas às seis me agoirava o futuro, olhando de soslaio as minhas olheiras pisadas e achando, coitada, que eu já não tinha remédio. Como é que transmito?, que me apetece recato e cama, mãos agarradas e vozes baixas, por favor não me apertes tanto!, que a verdade é raquidiana e não apenas um acessório, e que escrevo melhor quando dói, desculpem-me a pobreza da sintaxe e a vontade de me ir embora, mas não posso fazer nada. Sim, como explicar?, que foste sorte, acaso, tiro às cegas, pim pam pum, a álea da vida em todo o seu esplendor, a desdenhar das incompatibilidades cósmicas, dos conselhos de dinheiro, amor e saúde aos nativos de cancer, das minhas olheiras mastigadas e do agoiro triste da dona são, que sabia tanto da vida mas nada do amor, a não ser do amor pelos filhos e por isso das duas às seis, a passar a roupa e a olhar-me com pena, as pernas negras garroteadas e as tonturas da diabetes. Como explicar?, que as coisas são simples, afinal, e que a dor não passa de um caminho de sentido obrigatório que não dá para atalhar, até um dia chegarmos a quem nos espera desde sempre?