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um amor atrevido

um amor atrevido

Junho 13, 2010

the witches of eastwick

Vieira do Mar

Foi ela, que eu sei (foi ela). Que te lançou feitiços e macumbas, milongas e mandingas, com os amuletos e talismãs que enrodilha no pescoço, as rezas ao pai de santo e os serviços encomendados. Foi ela, que se banhou em águas turvas, segregou fluidos biliosos e depois tos deu a beber, entrada à força dentro de ti, coitado, que não tens culpa (que não sabes o que fazes). É certo que andávamos a despistar o branco das paredes da casa com o negro do nosso silêncio, como polvos assustados, mas foi ela e não tu, com as suas saias curtas, os trejeitos ordinários e aquelas raízes escuras que fogem ao descolorante barato, blonde claire número oito (que eu sei). Pois se até nem estávamos mal, tu à larga na cama vazia, eu à vontade no sofá da sala; pois se até te sentias mais livre, instalado no meu desinteresse pelas tuas passeatas tardias; e se eu, aliviada, por já nem dares pela gula do Carlos debruçada no meu decote quando cá vinha ver a bola. Foi ela, que te tirou do sério e te virou do avesso, que quase renegas os teus filhos. Tu que nunca lhes faltaste com nada, embora de dia fosse o trabalho e à noite, o computador; embora aos sábados de manhã, o ginásio, à tarde, os beberetes, e aos domingos, o futebol. E agora, o tribunal, os descontos no vencimento, a nossa casa em nome dela, que eu sei (foi ela). Que te viciou no seu sexo tépido perfumado de temperos exóticos, coitado, que não tens culpa, do prazer a que ela te obriga, do gozo que à força te impõe. Ela a zoar-te aos ouvidos rezas e encantamentos, a ensaiar nas tuas costas sacrifícios e sortilégios, a coser-te a boca com o veneno de promessas e os seus beijos peçonhentos. Ela, que te deixou indiferente a esta dor de silício que se me crava na carne e que, com um vudu de muitas loas, fez de ti um morto-vivo e parou esse coração que dantes batia por mim. E eu, que nem acredito nessas coisas, que sou de estudos e não de crenças, racionalista positivista epistemológica matemática; eu que passo por baixo de escadas, que durmo com gatos pretos e me vejo partida nos espelhos partidos, sei que foi ela e não tu (coitado), que não tens culpa (coitado), que não sabes o que fazes.

Junho 10, 2010

phone call from a stranger

Vieira do Mar

Ligas-me, e eu não acredito, deve ser engano, as linhas que se trocaram, o teu dedo que escorregou para o meu contacto já esquecido. Ligas-me, e eu penso que não, que não vou atender, que devo estar a ver mal, que só podes estar a brincar, que é primeiro de abril, dia das bruxas, a sentir-me tola, idiota paralisada, emparedada no tom de toque, à espera que desistas, que percebas o erro e que o telefone se cale. Ligas-me, e eu a olhar para o nada, pasmada, transida, está nos apanhados. Ligas-me, e eu a cismar no que poderás crer: um livro teu que ficou na estante, um cedê enfiado na aparelhagem da sala, umas calças perdidas no cesto da roupa, um relógio escondido na gaveta da cómoda (uns beijos teus no meu corpo, guardados, esquecidos, vestidos de pó), uma assinatura necessária num papel oficial. Ligas-me, dever-te-ei dinheiro?, dever-me-ás desculpas?; se calhar vais casar, ter um filho (vais ter gémeos); quem sabe um acidente, alguém que morreu, um escândalo, uma revolução, um cataclismo atómico à escala mundial. Ligas-me, e eu a pensar que apostaste com um amigo que eu atenderia logo, que assim empatas o tédio, que sorris com maldade para outra, deitada ao teu lado, enquanto enches o peito fútil à espera que eu atenda e fale, a parva, vais ver. Ligas-me, e eu por segundos imagino a conversa e treino a compostura, recolho um soluço que me empata o ar, carrego um canino sobre o lábio inferior, quase sangro nem noto, e fecho a boca para que por ela não me saia, disparado, o coração aflito. Ligas-me, e eu não atendo, poupo-te ao embaraço e ao inferno das explicações, aos olás de circunstância, deixo que toques e toques e que vás por fim parar às mensagens. Ligas-me, e eu espero, desejo e espero, que despejes para um gravador o teu erro, o teu tédio, o teu gozo, os pedidos, as desculpas, as incríveis novidades do mundo ou, quem sabe, a precisão dos beijos empoeirados que esqueceste e deixaste em mim.

Junho 10, 2010

lost in translation

Vieira do Mar

Sabes que é só quereres. Que, entre os silêncios e as palavras meias, basta uma destas, calibrada para a rendição e o assentimento. Que é mais do que suficiente, o exagerares o riso ou o alargares o passo na minha direcção. Uma carta à maneira antiga com um selo empertigado; um telefonema, uma mensagem abreviada em que os polegares se te fugiram e foste longe de mais. Sabes que me chega e sobra, um abraço que evites apertado ou um beijo na cara a resvalar para a boca, embalando-me os sentidos atentos com promessas cumpríveis. É só quereres, e eu caio-te nos braços com amplitude teatral, deixando que me dissolvas a pele com a língua e que a tua vontade impere por fim em mim numa fúria totalitária, mas doce. Sabes que uma palavra, apenas, me serve, ainda que desgarrada, truncada, encriptada e incorrecta; ou mesmo fugitiva e vagabunda, solta num grito de alforria. Espero um dia ser um alegre capricho teu e o objecto da tua preferência irresponsável, sujeita a critérios desmedidos. O meu desejo é circular e redundante: acaba sempre por voltar a casa e tem saudades, como um soldado ferido. É só quereres, e deixarei que me confundas com o rebentar das ondas e que contabilizes e anotes, com astúcia de merceeiro e intuitos de salva-vidas, os rodopios do meu corpo em despejo sobre o teu. Eu, vinda e ida na sétima, às vezes na quadragésima, encharcando-te, desprevenido. É só quereres (sabes). E eu quero que tu o queiras (sabê-lo-ás?).