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Não se pode dizer que tenhas estado sempre perto, à mão de semear, ao virar da esquina, mas finalmente encontrei-te. Não que te procurasse: foste-me tão natural como o vizinho da porta ao lado quando se cruza comigo no corredor e pigarreia, medindo-me a barriga das pernas, trémulas de subir as escadas. Atravessámo-nos um no outro com a inevitabilidade de dois troncos à deriva e represámo-nos alegremente: o entulho ficou para trás. Não me salvaste a vida, que até estava bem obrigada, mas tens essa distinta qualidade de me saberes, o que te cai na perfeição, como uma camisa de marca ou um casaco novo. Não romanceamos o presente porque nós somos o presente: partilhamos uma cama, um cigarro, um futuro e temos o pragmatismo das causas ganhas, o que, parecendo que não, alivia. Somos velhos amigos, companheiros de guerra e brincamos muito, porque temos alguma pressa: enquanto equilibramos orgasmos na ponta do nariz, fazemos a toca e construímos o ninho. Mas o mal de tanta beleza junta é que nunca nos habituamos à ausência, esse buraco no peito, de rebordos cauterizados, onde cabe um punho fechado. E, agora, o teu cheiro agarrou-se às minhas coisas como uma película fina de pó e eu não quero a empregada cá em casa, não vá ela, sei lá, sempre tão pressurosa. A melhor maneira de afastar o diabo é ir brincando à felicidade dentro destas quatro paredes, quem está livre livre está. É um facto que tudo era bem mais fácil quando apenas te adivinhava; hoje, mal reconheço os cantos à casa e, quando partires, tenho a certeza de que mudarei de côr como um polvo acossado. Folgo em saber, no entanto, que não nos somos fundamentais: afinal, toda a gente vive sem um braço, só é chato para os trocos.
Preciso de saber de ti, mais do que preciso de ti. Não aguento, sabes?, não saber por onde andas, o que te move, a quem te dás e por onde te deixas. Imagino que por vezes te movas bambo, trémulo, por entre o desgosto e a bulimia, por entre o jacto e a euforia, mas nem disso tenho a certeza: suponho-te, quase tanto quanto te amo. No dias ímpares, duvido-te. Sei que por aí já se sente o degelo e que a Primavera amolece os corpos e tinge de turquesa o mar, embora pressinta que não repares nisso, ocupado que estás em amesquinhar as coisas. Dói-me o corpo e estranho-me, como se eu cravada em mim; és uma transfusão do tipo errado de sangue, ou do tipo de sangue certo mas a circular pelo avesso: entras-me por artérias e sais-me por veias, pirateando-me as intenções e deixando-me num desnorte de náufrago, porém centrífugo: em deixando, vou rapidamente ao fundo e a pique. Há um travo cómico-trágico na desmesura com que não estamos, uma dimensão teatral que polui a realidade e exacerba a distância (de continentes afinal, apesar de tão poucos, os quilómetros). Ardo por ora numa combustão sem propósito, investindo o ressaibo húmido contra as almofadas de penas, empurrando com raiva o lençol para os fundilhos da cama. Há um rancor que me rói a pele e me estraga os planos, a cada vez que me lembro do limbo sulfuroso em que te moves, da insegurança pantanosa onde às vezes te afundas, e de como num ápice fazes tábua rasa de tudo o que ficou para trás, ainda ontem eramos felizes. Dá-me medo de que não mudes nunca, de que um dia sejas só frases de guerra e de que, ao invés, me mudes a mim cada vez mais. Enquanto isso eu aqui, líquida desfeita, a gerir a saudade e o rancor em partes iguais, expectante e mal-resolvida. Não aguento, sabes?, não saber por onde andas, trémulo bambo, mendigo eufórico, trágico inseguro, destruidor de mundos.
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