Agosto 07, 2006
one trick pony
Vieira do Mar
Não sei em que momento o teu tronco perfeito, alinhado por deuses gentis, passou de bênção sorridente a cruz às costas. Nem imagino o que te terei feito ao certo, para que me obrigues a carregar-te pela moínha dos anos como uma penitência azeda. Nós dois, de mãos dadas num paraíso de folheto, assimétricos como bainhas cosidas à mão, cedendo cada vez mais ao conforto morno da redundância e do silêncio. E os contornos molhados desta ilha em que resolvemos resolver-nos, acentuam ainda mais os rasgões da solidão sibilina na nossa carne triste. Não há oceano índico que nos enxagúe as mágoas, nem sol costureiro que nos vire os forros da alma magoada pelo avesso e no-la sacuda para o chão, a ver se sai o lixo e as sobras que não prestam. Em frente, um nativo de rosto gasto como as conversas em vão, toca música velha de namorados e sorri, ao teu gesto cuidadoso de casaco sobre os meus ombros arrepiados. Sabemos ambos (aliás, sabemos todos, até a senhora da agência) que o roteiro de um inclui o outro a diário, como visita guiada de turista enfadado. Mas eu duvido (sinceramente, duvido) que alguma vez volte a oferecer-te o meu corpo com o abandono dos crentes.