Novembro 06, 2006
kramer vs. kramer
Vieira do Mar
Traz-me o miúdo como to deixei, lavado, penteado, sem resquícios do teu cheiro ou da tua vontade; o blusão novo, que venha com a etiqueta. Traz-me o miúdo com a etiqueta, aquela de mãe amarrada ao tornozelo. O Amor da minha vida, vê bem, agora um instrumento nas nossas mãos egoístas e de dedos em riste; o nosso boneco lindo, uma motivo para nos orgulharmos do que fizemos e para nos envergonharmos do que somos. Se a alegria dele por estar contigo for desmesurada, e frouxa, a vontade de vir para mim, tu é que pagas, porque eu quero-o feliz, mas assim tanto e ainda por cima contigo, nem por isso. Se for o caso, queixo-me em tribunal, alguma coisa se arranja para te incomodar os dias, nas próximas semanas. Traz-mo às seis em ponto, deixa-o no elevador que ele sobe sozinho, sabes que ainda te quero, que te venero as pálpebras, as falanges, a curva volátil da tua maçã-de-adão, mas que não suporto nem ver-te. É que eu sou a mãe, sabes: foi a mim que ele esmagou a bexiga, pontapeou o esterno e se revirou como uma roca de fiar durante tantos sonos truncados. Não quero que te olhe, saudoso, quando lhe virares as costas. Faz como sempre fizeste: dispensa-lhe a habitual atenção cortês, dá-lhe só aquilo que tens, não te aventures no desconhecido. Traz-mo, para que eu o aninhe no meu colo-cela mesmo que ele não o queira e não esteja especialmente ansioso pelos meus afagos desconchavados de fêmea que se consola, lambuzando a cria crescida. Nada de brinquedos novos e caros, não mo compres nem o iludas porque a verdade, agora, são natais cortados ao meio com o sabre do desamor, e páscoas alternadas com sugestões de alívio pontuadas de solidão. Ele é muito mais meu, repara, sempre mais meu: não são as tuas tardes radicais duas vezes por semana que apagam tantas noites minhas em claro, mergulhada em fraldas, leites e choro; tantas noites, emparelhadas com teu ressonar pesado, suado e indiferente, a embalar-nos, como uma canção desafinada.