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um amor atrevido

um amor atrevido

Dezembro 08, 2006

titanic

Vieira do Mar

Tira-me estas noites longas da frente da vista fraca, empurrada a lentes grossas; afasta para o lado o armário dona maria onde guardo tantas memórias desfeitas nas pontas, como os macramés, as rendas desbotadas de noiva, as pretas de viúva, os naperons esburacados, as fotos desbotadas de falecidos despontando bigodes e cinturas austeras. Contrata-me uma empresa de mudanças, daquelas para transportes perigosos, que tenha grua para levar pelos ares este amor velho e desmazelado; estou tão leve, sabes, leve como uma fada, o tempo levou quase tudo o que me era físico: um rim, uma vesícula, os músculos com que te apertava contra mim; e levou-me a consistência feroz da pele, hoje quase transparente e com vontade de cair por terra, de se juntar a ela e de se unir a ti. Distribui esta impressão, que ainda tenho entre as pernas, de quando me trepavas o vão da janela do quarto de solteira com os olhos cheios de auspícios de cama, pelas mulheres da rua, para que lhes alivie a função. Sopra-me esta saudade selvagem para longe, contrata especialistas em desratização e que me fumiguem esta vontade estéril de ser tua uma e outra vez, enquanto a escalfeta me aquece os joanetes doridos por debaixo do xaile preto e a novela da noite faz por me domesticar a desatenção. Dizima-me esta praga de querer que entres em mim e me faças o primeiro filho e de querer esquecer que já tenho netos que me olham com dó, de esquecer que todos se esqueceram de que ainda sou mulher, por debaixo das artroses e do xaile preto. Porque há uma vontade de mulher que anda à solta por aqui, que se reproduz em qualquer clima, que se adapta a quaisquer circunstâncias, que faz ninho nos armários bichados da cozinha antiga e que se passeia pelo serviço esbeiçado da fábrica real, por onde bebo o teu chá favorito e te beijo os lábios.