Maio 07, 2008
brief encounter
Vieira do Mar
Aprende-se a viver com isto. Como um defeito de nascença, uma doença crónica, uma carência vitamínica ou um incómodo sazonal (um pé boto, um lábio leporino, uma febre dos fenos). Aprende-se, como uma erupção cutânea, a vista cansada ou um ataque de asma. Ou como a minha avó, que um dia me disse ter vivido grande parte da vida com o fantasma mudo de um frade franciscano no seu metro quadrado: ela andava, ele andava. E como isto lhe fazia impressão quando estava com o meu avô, não pelo meu avô mas pelo frade, que nessas alturas lhe parecia aflito, sem sítio para onde fugir nem parede para a qual se virar, obrigado aos roçares pudentes das flanelas vestidas, na cama dona maria. Aprende-se a viver com isto, e a desvalorizar os encontros, as coincidências (nas datas, nos sítios, nos nomes) e os sinais premonitórios, como a forma de algumas nuvens no céu e certos desenhos que surgem do trilho deixado pelo voo tardio das aves. Aprende-se a relevar, o amor que imaginámos na rapidez de um olhar, o embaraço que pressentimos num modo de andar ou o constrangimento que quiséramos por conta de um desejo violento. E a achar normal e previsível que o telefone não toque, as notícias não cheguem e que a vida continue apesar de. Aprende-se a viver com isto, com o teu ectoplasma quase colado à minha pele, sem teres para onde fugir nem parede para a qual te virares, quando dispo as minhas flanelas e entro na noite de rompão, fingindo que não é para ti que fico nua no escuro.