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um amor atrevido

um amor atrevido

Julho 01, 2008

the way we were

Vieira do Mar

Gostava de ti como és, assertoado e bem vestido, composto e melhor nascido, menino de coro e de igreja. Eu, febril e escarolada, que gargalho e que praguejo, que bebo panachês e cerveja enquanto tu vinho tinto, gostava de ti como és. Eu, o top que não diz com a saia, a borbulha no meio do nariz, a puta da ovulação, os berloques falsos nos pulsos, os brincos de filigrana. Eu, que quase não corto o cabelo e roo as unhas até ao sabugo pelos nervos de te encontrar, que me sento e as pernas soltas, descalça debaixo da mesa. Que te afagava as virilhas com as pontas dos pés nus, como vi fazer num filme e tu, com o sorriso chique e um embaraço polido, a disfarçares o prazer que te rebentava nas calças, vincadas na perfeição pela criada da família; e a abanares a cabeça, resignado e divertido, quando te sugeria impossíveis e te propunha impraticáveis. Gostava de ti como és, eu com os tornozelos imperfeitos, os pêlos que escapam à gilete romba, o verniz das unhas lascado. Tu, deus pátria e família e eu a abalar-te a fé, a pisar a bandeira nacional e a arrastar-te os parentes pela lama. Tu, a pose de exilado real a banhos no estoril e eu, a plebeia de um só nome e do apelido comum, aos milhares nas páginas amarelas. Gostava de ti como és, a camisa de algodão às riscas, o relógio antigo do avô que te calhou em partilhas, as botas de montar ensebadas, os sapatos de vela no verão, o perfume italiano e eu, o desodorizante hipoalergénico e o creme nívea nos ombros, as chanatas enfiadas nos dedos, os lenços de seda ao pescoço, a filha de um deus menor enfeitada na loja chinesa. Tu, reaccionário, conservador, culto e irascível, e eu, um nadinha hipócrita e sobranceira, os pobres e o continente africano, a enfraquecer-te as convicções só porque me achavas estranha e me querias levar para a cama. Eu, a interromper-te com descaro a consoada na quinta do douro, as tias emproadas a tombarem os ouvidos moucos para o telefone velho da sala, a sondarem o teu rubor súbito e a chamarem-te menino. Eu, lunática e aluada, ontem como hoje, a acreditar que foste tu o leitor das dezoito e trinta que aqui andou por mais de uma hora. E que, enquanto me leste, não perdeste a postura nobre nem o vinco perfeito das calças (que as tuas mãos, não obstante, terão feito por amarrotar, enquanto me procuravas na pele e o sangue azul te fervia).