Agosto 03, 2008
danger: love at work
Vieira do Mar
Manhã cedo, a porta abre-se. Entro de cabeça baixa, como sempre, com medo de que o estremunho me distraia e o chão me falte. Encaixo-me entre corpos a cheirar a fresco e é então que te vejo. Primeiro andar. Estás mais bonito do que nunca: umas rugas subtis, finas como nervuras de folhas, enfeitam-te os olhos risonhos, que obviamente se divertem ao repararem em mim. Segundo, terceiro. Percorrem-me as curvas recentes e as saliências antigas; trepam-me, como se dois miúdos à solta num campo em busca de flores e de insectos ou apenas de coisas que os distraiam, enquanto eu estática, parada, avariada. Ofendida. Quarto andar. Com um agrado tão displicente que mais parece fortuito, dás-me um abraço fraterno e mostras-te contente, como quem há muito não visse um amigo querido de quem já pouco se lembrasse. Quinto. Só que eu não te quero contente, nem que estejas sinceramente agradado por me veres, ora essa. Sim, sei que estou óptima, não preciso que mo digas. Sexto. Quem pensas que és para me olhares assim bem disposto e te congratulares com a minha presença? Quem?, para eu te ser tão indiferente ao ponto de te mostrares genuinamente simpático comigo, atirando-me com o sorriso encantador que dispensas habitualmente aos passantes, aos meros conhecidos, aos amigos distantes? Sétimo andar. Quero-te compungido, ao menos incomodado; quero que me olhes com a expressão aflita que fazem os que dão de caras com a sua maior perda mas tentam disfarçar. Podes até cobiçar-me um bocadinho ou reconheceres o meu perfume dos tempos em que mo lambias do pescoço. Oitavo. Apresentares-te um tudo nada perturbado, ou apenas nostálgico, pronto. Engole um suspiro, reprime um soluço. Nono, décimo andar. Mas não fiques contente por me veres, isso não, santa paciência. E muito menos te mostres indiferente ao nos despedirmos, sem qualquer resquício de desespero. Décimo primeiro, é aqui que eu saio. Atreve-te a não vires atrás de mim e a ficares aí, a acenares-me com ligeireza, beijinhos até um dia. Mostra ao menos uma certa pena, faz um gesto para me alcançares, um arremedo de lamento. Gagueja, mete os pés pelas mãos, transpira demais, embacia o riso dos teus olhos com a névoa de uma certa tristeza. Não? E um amuo ou um beicinho antes de a porta se fechar?