Março 08, 2009
lust, caution
Vieira do Mar
Queria que me levasses para uma pensão rasca com águas quentes e frias, daquelas com nome de enlevo patriótico a lembrar o império português, só com escadas, que subiríamos ao ritmo descompassado do coração para um quarto esconso ao fundo de um terceiro andar com vista sobre a cidade, nas tintas para o cliché. Queria que ninguém soubesse e que quem soubesse não se importasse, que um indiano seboso se escondesse atrás de um pebêxis antigo e nos desse a chave sem sequer nos olhar, sem termos de dar nomes ou moradas. Nem me importava que me achassem puta e a ti, cliente, quando nos vissem correr urgentes pelo tabuado velho do corredor estreito, o cheiro a batata doce de alguém a cozinhar cachupa no quarto a colar-se às paredes húmidas onde os meus dedos nervosos tacteantes evitariam os fios descarnados, nós tontos de desequilíbrio com o desejo a nadar-nos entre as pernas, qual é a merda da porta. Queria que me amasses com a calma de todas as coisas no bafio escuro de uma cama suspeita de não ter sido lavada, a luz de Lisboa a entrar e a refractar-se nos bocados partidos dos azulejos pombalinos rematados com cimento, os inteiros entretanto vendidos na ladra para irem pagando aos poucos os remendos da canalização, águas quentes e frias. Queria que o ruído dos vícios privados dos outros fosse a banda sonora de um filme só nosso, ao mesmo tempo sórdido e inocente como afinal somos um com o outro: gráficos, excessivos e desbocados, mas também ingénuos e sem qualquer noção do devir, insistindo teimosamente na inconsequência da nossa irresponsabilidade, como as crianças. Queria que me despisses, que me olhasses nua, que te demorasses na contemplação, que percorresses com a língua tudo o que em mim estivesse a mais e fora do lugar e que o tempo entretanto parasse para eu poder dizer-te pausadamente, entre soluços de prazer, o que sinto, o que me és e o que nunca me poderás ser, águas quentes e frias.