Outubro 03, 2009
autumn sonata
Vieira do Mar
É Outono e afinal tu não estás (mentiste-me). E eu fujo da felicidade dos outros como o diabo da cruz. Casais passeiam-se pelas ruas, enroscam-se nos sofás a ver filmes alugados, tocam-se os dedos dos pés nas suas camas mornas. Mulheres completas pespegam a intimidade online para que os outros a saibam, os mimos trocados e as viagens feitas, num desfio de memórias que passam a ser do universo inteiro. Todos me parecem contentes, satisfeitos com as caras-metade, os rebentos, as compras, os fins-de-semana; e eu roída de uma inveja soturna e febril, a querer rever-me a cada confissão pirosa, a cada vulgar escapadela. É Outono e tu não estás. Serás porventura uma dessas pessoas, mais feliz do que eu, devidamente acompanhada, a cumprir um destino comum, a partilhar uma manta à lareira, a receber um beijo ensonado a meio da noite, um abraço dolente ou uma mão entalada e esquecida entre as pernas. Uma dessas, que alardeiam a sorte que têm, abençoadas, que sonham sem pesadelos, que choram pouco ou quase nada, cujas refeições são sempre gourmet, cujas férias são sempre à beira-mar, que se vêm sempre que fodidas. Devidamente curado e cicatrizado, as feridas lambidas à exaustão, terás renascido, reavivado chamas cúmplices e despertado para o altruísmo do amor. É Outono. E nada daquilo que imaginei um dia aconteceu entretanto. As noites continuam enormes e os dias, imperfeitos como um poema inacabado, e só o frio me poderá agora consolar ao me dar um motivo válido para a recolha entre paredes e o excesso de música antiga. Vou ao arrepio dos humores da cidade volátil e egoísta, esta cidade que me fere com o cheiro doce das castanhas e me enterra no corpo a vontade afiada de polegares farruscados de cinza e de letras de jornal. É Outono e afinal tu não estás (mentiste-me).