Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

um amor atrevido

um amor atrevido

Abril 16, 2007

the last kiss

Vieira do Mar

Nada mudou. Continuas a aldrabar-me: está na tua natureza; continuo a desconfiar de ti: está na minha. Nada em nós é verdadeiro, excepto o facto de dormirmos costas com costas e de, mesmo assim, eu afinar o ouvido na tua direcção à espera de uma evidência que me leve a odiar-te legitimamente. À noite, descortino as sílabas de outros nomes nos silvos do teu ressonar; de dia, penso de quem será a mensagem que recebeste e porque razão não me atendes às três da tarde, quando o resto da cidade fervilha de disponibilidade e trabalho. Os nossos fins-de-semana estendem-se para além da vista como uma paisagem deserta e até o fosso da labuta diária é melhor do que as línguas de silêncio que nos lambuzam os domingos. Em cada gesto teu antevejo fuga e memórias protegidas por palavras passe de muitos dígitos e caracteres, nas quais te enrolas e reconfortas. Compenso a humilhação que é espreitar-te o fuso dos dias com o orgulho de não deixar que me toques, que sequer te aproximes: serás de outra, não sendo meu. Invento que esta altivez é o teu castigo, mas desconfio que seja antes o teu alívio. Continuo a ver, nas manifestações do teu corpo, provas irrefutáveis de desamor e de desconforto, como se a tua falta de apetite fosse mais do que o simples marinar de uma gripe, ou o teu balbuciar engasgado, quando acordas de repente, não resultasse da sinusite que te entope a cada inverno. Persistes em achar que o amor nada tem a ver com sexo e eu, que o facto de assim pensares mata o amor, fazendo-me recusar-te o sexo. É tamanho o vazio, que a mais breve discussão insufla o nosso quarto de uma espécie de paixão, de reconhecimento mútuo, de vivacidade inesperada, como se a sinergia súbita entre dois seres que habitualmente se ignoram pudesse delinear entre ambos um carreiro de afectos. Somos dois egos letárgicos que se acomodaram ao convívio mútuo: tu, com os meus cremes e desconfianças espalhados pelo lavatório; eu, com as tuas toalhas e aldrabices espalhadas pelo chão. Nada mudou.