Dezembro 20, 2008
kramer versus kramer
Vieira do Mar
Ficas com eles na consoada. Que não abusem dos doces, nem da vontade de ti, nem dos mimos dos outros. Atenta-te neles e agasalha-os bem. Cuidado com o frio, com as esquinas dos móveis, o açúcar nos dentes e as saudades de mim (que sei que vão ter). Aconchega-os na cama e deixa-lhes acesa uma luz de presença como se fora eu, vítrea rosa, analgésica, a iluminar-lhes o caminho alteroso dos sonhos e a aplacar-lhes as dores que às vezes se encaracolam nos seus corações em repouso. Porque a noite tem garras e toma amiúde formas de assombro, e eles bem conhecem os caminhos da decepção. Enquanto o tempo fizer que passa, irei ao meus pais. Dar-lhes um beijo, provar a secura do peru que a minha mãe assou para mim e que repousará inteiro na mesa no dia seguinte, como um cadáver frio: os restos mortais de nós. Depois, um comprimido e uns copos, um brinde sozinho ao nada em nenhures e esqueço-me da vida até de manhã, quando eles chegarem. Traz-mos cedo, lavados e penteados. A ele, desenha-lhe o risco com jeitinho, baldeado para a esquerda; a ela, prende-lhe os totós ao de leve e deixa-lhe o elástico largo, como se uma mão de mãe lhe sustivesse no ar os cabelos de fada. Na mala, o boletim de saúde e uns benurons, que isto nunca se sabe, andam vírus à solta. Ai de ti se me ficam doentes: serás sempre o culpado, o culpado de tudo (do peru, tão seco; da noite deles, tão escura; da minha sombra, tão frágil; da curvatura triste dos meus pais, até). E não te atrevas a conquistá-los com a última consola ou a maravilhosa boneca robótica: o amor extemporâneo não recolhe frutos. E se os vires felizes, nem por isso acredites: não será certamente do aconchego da lareira ou do carinho empenhado dos avós; nem, muito menos, do teu abraço grande, redentor e ampliforme. Fui eu que os eduquei, sabes?, para o exercício da benevolência subtil e da polidez agradecida, que todos devemos aos estranhos que nos são de repente agradáveis.