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um amor atrevido

um amor atrevido

Setembro 16, 2008

the purple rose of cairo

Vieira do Mar

Não, não acabou. Gostava que tivesse acabado; gostava de ter lavado de ti as minhas mãos e ponto final parágrafo, mas dou por mim aqui, neste sítio contigo dissimulado dentro, como uma arma com disfarce regateada na feira, das que nem parece que magoam. Pestanejo e cá estou, jazente e escondida, no único lugar onde sei que te tenho; onde já te amei tantas vezes que enjoei o salitre do teu corpo; e onde exorcizo a minha banal existência, exagerando-te e ampliando-nos. É por isto que preciso de continuar a querer-te com a desmesura com que se quer nos filmes mudos, e a escrever o arrebate das tragédias a preto e branco, com grandes planos que são grandes demais e gestos de amor abruptos, como saltos de insecto ou cortes inesperados na fita. É aqui que te esqueço e repudio e me apaixono por ti uma e outra vez, e onde às vezes mais não és do que uma lembrança antiga, desbotada como um linho de avó, que me inspira ao tacto. Aqui, prometo-te a eternidade adiada, enquanto fazemos amor e as contas do IRS, enquanto conferimos os dedos um do outro, as brancas no cabelo e a lista do supermercado. Aqui, deixamos o telefone tocar e a porta bater, e eu engulo todos os sons que não sejam o das nossas respirações em dueto. E esqueço-me de quem sou, querendo-te para o resto da vida e mais um dia, e dizendo-to avidamente à sombra da prateleira dos enlatados. Por isso, não, não acabou: estarei condenada, parece, a voltar aqui, a voltar a ti. Tal como tu, condenado a leres-me, a leres-me sempre, num impulso alcoviteiro e a uma distância sem remédio.