Novembro 20, 2012
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Vieira do Mar
Sabes que finjo, mas na realidade entendo. Que o Amor é destrutivo, que o sexo pode ser agressão, parte incerta, alienação, bem perecível que se esgota no corpo do outro, mesmo que com prazo alargado de validade. Que as palavras são uma arma que por vezes atinge mais fundo quando arremessadas à distância, do que quando ditas nos olhos e chocam na máscara que cada um coloca para sua protecção no combate corpo a corpo. Com a pele à solta, o instinto clama protecção: então somos cavaleiros medievais, esgueiramo-nos das investidas alheias, usamos armaduras polidas sobre a carne amedrontada enquanto o cérebro selado a aço flui por dentro, a explodir de adrenalina, desejo e morte. Nunca nos poderemos ver. Quarto escuro, venda nos olhos, cegueira de luz, fotobia, visão insuportável, excisão. Somos um abismo comum; o espelho onde vemos o que já sabíamos do outro e o que suspeitávamos de nós. Ficaríamos nus, indefesos. Afastemo-nos, então, ímanes de pólos opostos, bastardos do mesmo pai, incesto, pecado, devassidão. Nunca nos poderemos ter. Lobo de noite, falcão de dia. Seríamos reactor avariado, fusão dos mesmos males, piratas sanguinários, vilões deformados, vampiros translúcidos, assassinos em série com traumas de infância. À solta um no outro, enquanto o resto do mundo um imenso festim para mútuo comprazimento. Um desastre natural de proporções épicas, um filme catástrofe de efeitos aprimorados, explosões múltiplas em surround, Bum! Splash!, Bang!, o medo do fim a arrepanhar entranhas, a realidade a entrar sem licença. Ondas gigantes devorar-nos-iam, terramotos empurrar-nos-iam para os centros de todas as terras, avalanches enterrar-nos-iam no nosso próprio estupor. Aviões contra torres, a voragem dos tornados, o retorno aos dinossauros, à era pré glaciar. Ambos perderíamos. A arte da manipulação pede que um se deixe manipular; a do amor, que um se deixe amar. Nenhum de nós permitiria nem daria nada ao outro: não gostamos de nós, não nos achamos credores do Bem. Mas o pior seria os outros, alheios a esta guerra sibilina, fratricida, borgiana: transformá-los-íamos em cinzas, numa forma de nada, abaixo de pó. Tu serias Eu, portanto, repara, não se trataria de ciúmes: comigo só fazem o que eu deixo. Ponto. (assim, ponto: porque não existe onomatopeia que exprima adequadamente o silêncio mortal de uma explosão atómica).