Fevereiro 17, 2016
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Vieira do Mar
Um texto de amor é um texto de amor. Nem sempre remendado com metáforas entrepernasedesejosmolhados. Um texto de amor é saudades furibundas contigo ainda ao lado. É pés morenos enfiados em chanatas que escorregam em pedras molhadas só para vermos os confins enovoados de uma praia. São tardes na varanda a olhar para as cegonhas e intercalar tratados de eloquência com silêncios de abissais, como quimeras. É encobrir segredos, confrontar ofensas, seguir em frente, não perdoar porque nada há a perdoar, apenas disparates que fizemos porque sim e porque tudo foi ontem. É tocarmo-nos onde mais ninguém tocaria se não fosse a sério, é dizer o que mais ninguém diria se não nos soubéssemos ouvidas, é usar o pressentimento para correr para a outra ou viver a nossa vidinha aparte quando pensamos que tudo está bem. O nosso amor é amoral, esquecido, translúcido e presciente. Não duvida nem desconfia. Não faz cerimónia e tanto anda ao estalo como aos beijos. Mas não levanta a voz, não se ressente e é alegremente ordinário, destravado como um filme cómico para maiores de vinte e cinco. É vernacular, sempre a desmembrar o cinismo alheio, filho da puta canibal, mas também clemente como uma freira bondosa, daquelas que pesam quarenta quilos e vão para áfrica. Raras são as vezes em que não estamos de acordo, mas quando acontece, discutimos à exaustão até não mudarmos de ideias. Depois, seguimos em frente para outra coisa qualquer. Nada em nós se parte nem se reconstrói, não é preciso. Somos intactas. Não nos fazemos favores nem nos agradecemos, basta pedir; nem isso: basta dizer ou calar. Às vezes, um átomo revolto desperta em nós um ciúme azedo e súbito, mas volátil, e quase nunca uma com a outra, o que nos facilita a vida: podemos sempre infernizar a dos outros. A nossa amizade é antiga, somo almas velhas reencarnadas que se encontram até já não se poderem aturar, fartas das tantas vidas bizarras em que foram obrigadas a cruzar-se. Brincamos de ser livres mas, às vezes, mirramos em celas contíguas, duas prisioneiras a comunicar pelo sistema de ventilação e a engendrar irreais planos de fuga. A tua força perante a adversidade, que insisto em confundir com optimismo, irrita-me. Mas calo-me porque tu sabes. Vejo sempre o pior cenário em tudo e nem disso me tentas demover, o que me irrita ainda mais. Muito é preguiça em nós, daí se calhar não precisarmos de conversas de café e preferirmos beber e fumar e comer de boca cheia - mas com os talheres certos. Esta última parte é tua. A telepatia não é um dom, mas uma artimanha de quem não lhe apetece esforçar-se muito, o que é o caso. Quero que te lembres da piscina insuflada no meio das ervas daninhas, da paz perfeita naquele bar longínquo com os homens mais bonitos do mundo, da tua gata aninhada no meu colo (aguenta-te), dos gins improvisados com as sobras de fruta, das minhas costas no teu horrível sofá, dos nossos cães a fugir pela areia, e do inferno que passei junto a um mar onde só contigo consegui regressar. Sabes que irei logo a correr, quero lá saber se para o outro lado do mundo, irei.
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