Junho 16, 2015
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Vieira do Mar
Tem dias em que me falta a solidão do nosso silêncio, vá lá a saber porquê. Era um silêncio infeliz mas a tristeza também enche, quando o resto falta. É uma carência que me bate a dias incertos, sem aviso nem razão. Passa sem deixar vestígios, como um ataque de ansiedade no meio do trânsito ou uma dor de barriga antes de um exame de matemática. Aguento-me quieta porque sei o desfecho de ir ao teu encontro, impulsiva, como de costume sem nada para dizer, só para te ver, que tenho saudades. Não tenho. Estou apenas num daqueles dias em que não aguento sozinha os murmúrios da cidade.
Sâo repentes em que preciso de ver a tua miséria para minorar a minha, relativiza-la, perceber que o teu poço é mais fundo do que o meu, que nem o eco da tua voz cá acima chega. Tomo dois Rivotril, e espero. Escondo a chave do carro para não me apanhar sonâmbula à tua porta, a olhar-te a janela, aberta ou fechada, será que estás, que me vais deixar entrar? Que vou poder escarafunchar na ferida mais um bocadinho? Ou já cicatrizaste? É o mais provável, e é o medo de ver que ganhaste que me impede na verdade de me meter ao caminho. Rezo sempre para que me ignores e me desprezes, pois estarmos juntos é como dois sem abrigo que têm de se encaixar no mesmo saco cama sebento para sobreviverem à noite fria nas escadas de um prédio fino. Limitam-se a lutar por espaço e vêm no outro o seu próprio desamparo.
Tenho o coração aos pulos como se de repente me apaixonasse, porque sei que neste momento corro perigo. Eu, não tu. Tenho pouco em mim, mas corre-me nas veias força vital e alegria, gente, coisas, poesia, cafés, génio e música; e, se eu deixar, sugas-me esse pouco que tenho, num vórtice de tornado, deixando-me oca, às cabeçadas pela noite da cidade, a aceitar shots de velhos endinheirados de esgar lascivo, dos quais fujo quando finjo ir à casa de banho.
O Sr. Gil, guarda reformado e segurança da minha rua, cuja mulher, porteira do prédio em frente, se põe à janela a ajeitar-lhe o capachinho antes de ele sair para o trabalho, já sabe, quando me vê chegar bamba, a falhar a fechadura da entrada, que andei a fugir de ti. Trata-me por menina, mas penso que no fundo me acha velha, apesar de ele andar já perto dos setenta. Nessas noites, quando percorro todas as ruas de Lisboa menos a tua, parece que adivinha, abre-me a porta do carro e encaminha-me gentilmente para a entrada do prédio. Depois, fica a olhar para a minha janela, como que para ter a certeza de que o perigo já passou e que as mãos já não me tremem. Em tempos, costumava ver-me a chegar de tua casa de madugrada e era como, se na sua sabedoria transmontana, adivinhasse que vinha seca por dentro, como um graveto morto. Tratava-me com uma gentileza desmesurada para que não me partisse e dizia com ar solene (apesar de me achar velha) menina, tem que se afastar de pessoas que lhe fazem mal, como se me estivesse a ler a sina. Acho que o menina é de dó, porque não tenho um homem, o que é uma espécie de orfandade, ou então como se fosse uma tia solteira de útero mirrado que passasse os dias a olhar a fotografia gasta do cabo raso que lhe fizera promessas fecundas no momento em que os pretos lhe rebentaram os miolos no assalto à caserna. A carta ficou a meio e tem nas pontas vestígios de sangue, mas ela ainda a guarda, numa caixinha de música que só cospe uma nota. Eu sou essa tia da carta incompleta, que enlouqueceu porque sabia o que viria a seguir, apesar de não estar escrito.
Sim, a seguir venho eu e, por milagre ou obra do diabo; encontro a porta verde cá de baixo aberta e subo as escadas estreitas e mal cheirosas até ao primeiro andar, sem tocar para que não me possas deixar na rua. Quando vês quem sou, hesitas, quase que te ouço gritar, mudo; pode ser que abras, pode ser que não. Se abrires, encontro-te invariavelmente nu, calado, despudorado, a cama desfeita, e assim continuas apesar da minha presença, a ver tudo em ti descaído, sem força, desossado. Um dias destes, encontrar-te-ei acompanhado na cama e nessa nudez inválida, quase de certeza, o que não seria de todo embaraçoso. Ou me fazia convidada para um café, apresentando-me gentilmente, ou me despedia sorridente, ou partia-te a casa toda, companhia incluída. Se calhar, fazia as três coisas, não necessariamente por esta ordem. E continuaria a não te querer para nada.
Na próxima sessão de terapia, falarei sobre os bichos da madeira que corroem o soalho da tua casa velha, que subiam a parede e me percorriam durante a noite, mordendo-me, e fazendo-se notar mais na minha pele do que as tuas mãos geladas. Que só aqueciam pela manhã quando acordavas teso e te friccionavas violenta e cadentemente, como se à beira de descobrires o fogo na idade da pedra. E eu, na outra ponta da cama, a apreciar-te a eficiência extrema, num rancor resignado, a fumar o décimo cigarro. Afaste-se de quem não presta, menina. Mais dois comprimidos e um uísque puro, e só daqui a três semanas me volto a lembrar dos café au lait com que me obsequiavas ao longo da noite por não me conseguires foder.