Dezembro 19, 2015
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Vieira do Mar
Não que sejas um monstro, nem mesmo um traste, és apenas a metade de um homem cuja outra metade um dia quereria ter sido boa. És meia torrada com pouca manteiga, os primeiros capítulos de um livro gordo, um vinil riscado por alturas do refrão. És arraçado de maldade, embora não sejas propriamente mau: só vês o mundo zarolho. És a parte importante de um projecto que falhou, porque a parte que o fez falhar. És a metade, não de um todo (nem sequer de um todo), mas para aí de dois quartos. A metade da metade. És o bólide que abranda a meio mesmo que nada se atravesse na reta iluminada; a parte que não recua nem pede perdão, que chafurda na pena e se excede na raiva, que atira com o desgosto ao ar para quem o apanhar, que marra contra comboios de chelas, ignorando o desvio a tempo. A metade que tu és agarrou-se ao meu eu inteiro. Fui mais matéria, mas menos espírito. Agora vou apanhar-me as pontas soltas, colar-me os cacos, serzir-me por dentro e deitar-te fora, como bagagem, tem que ser. Não deixarei mais que que trepes por mim como um pai natal de varanda, pendurado num qualquer apêndice meu até ao carnaval. És pintura inacabada. Não a adoração dos magos, mas mero esboço de um estranho, à venda na zona turística do centro histórico. Não és o escravo incompleto, não descendes de um escultor maior. És a metade que falta, mas não a metade que conta. Escolhe a vida, não escolhas a vida. Espera!, escolhe a vida, mas dá-lhe com tudo: não arrepies caminho , nem vás por atalhos, capuchinho, não cortes nos cigarros nem no perdão; aguenta-te à bronca, que o teu fim está longe, para lá do horizonte que segura o mar. Mais depressa vês a américa.
(21 grams)