Novembro 10, 2016
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Vieira do Mar
A gente sabe lá de quem é o amor que não temos, por onde anda, a quem aproveita. Nós não, com certeza. Muito do que temos reside naquilo que não nos acontece. Quando falamos dos dois, o assunto debanda em todas as direcções como uma manada assustada. A linguagem comum do nosso mister é um código confortável que nos mantém o desejo ocupado, ao menos mantemos as línguas afastadas, não há nada menos sexy do que falar do que não nos dá gozo fazer. Esforças-te por não olhar para o relógio e eu esforço-me para não reparar que te estás a forçar. Sai-nos tudo tão natural como petróleo refinado; a superficialidade nervosa, a conversa volátil como uma nuvem de verão. Só o olhar nos trai, quando escurece e perscruta, mas, ainda assim, só vemos no outro a prosaica e terrena antecipação do prazer, mesmo quando este não acontece. Não queremos realmente saber o que o outro sente, intuimo-lo desde o primeiro dia, seja lá quando isso foi, no princípio era o verbo; eu miúda pelas esquinas do colégio a arrancar cabeças às bonecas das outras e tu já a espreitares-me o frenesi destrutivo pela fresta da porta da aula de trabalhos manuais (esta parte inventei, mas podia ter sido assim). Mal tu sabes que, às vezes, queria acompanhar-te aos casamentos com um vestido de seda selvagem a combinar com a tua gravata, dolorosamente aprisionada nuns sapatos muito altos a fazer pandã, os dois apanhados numa fotografia em pose de amigos dos noivos, num status quo entediante e piroso. E depois andarmos pelos fundões da cidade, indiferentes e brilhantes, a estarrecer o mundo, com as minhas gargalhadas de estar feliz a ecoar nos graffitti dos becos de má vida. Não existem poemas de amor para quem não sabe a quem deixar a sorte do futuro. A gente sabe lá de quem é o amor que não temos.